A ESCRAVA ISAURA

Álvaro, não obstante ficar sabendo depois da noite do baile, que Isaura era uma simples escrava, nem por isso deixou de tratá-la daí em diante com o mesmo respeito, deferência e delicadeza, como a uma donzela da mais distinta jerarquia social. Procedia assim de acordo com os elevados princípios que professava, e com os nobres e delicados sentimentos do seu coração. O pudor, a inocência, o talento, a virtude e o infortúnio, eram sempre para ele coisas respeitáveis e sagradas, quer se achassem na pessoa de uma princesa, quer na de uma escrava. Sua afeição era tão casta e pura como a pessoa que dela era objeto, e nunca de leve lhe passara pelo pensamento abusar da precária e humilde posição de sua amante, para profanar-lhe a candura imaculada. Nunca de sua parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos casta haviam feito assomar ao rosto da cativa o rubor do pejo, e nem tampouco os lábios de Álvaro lhe havia roçado o mais leve beijo pelas virginais e pudicas faces. Apenas depois de instantes e repetidas súplicas de Isaura, havia tomado a liberdade de tratá-la por tu, e isso mesmo quando se achavam a sós.

Somente agora pela primeira vez, Álvaro, dominado pela mais suave e veemente emoção, ao proferir as últimas palavras, enlaçando o braço em torno ao colo de Isaura a cingia brandamente contra o coração.

Estavam ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de amor, quando o ruído de um carro, que parou à porta do jardim, e logo após um forte e estrondoso — ó de casa! — os fizeram separar-se.

No mesmo momento entrava na sala o boleeiro de Álvaro, e anunciava-lhe, que novas pessoas o procuravam.

— Oh, meu Deus!... que será isso hoje!... serão ainda os malditos esbirros?... — refletiu Álvaro, e depois dirigindo-se a Isaura:

— É prudente que te retires, minha amiga, — disse-lhe; — ninguém sabe o que será, e não convém que te vejam.

— Ah! que eu não sirva senão para perturbar-lhe o sossego! — murmurou Isaura retirando-se.

Um momento depois Álvaro viu entrar na sala um elegante e belo mancebo, trajado com todo o primor, e afetando as mais polidas e aristocráticas maneiras; mas apesar de sua beleza, tinha ele na fisionomia, como Lusbel, um não sei que de torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que incutia pavor e repulsão.

— Este por certo não é um esbirro, — pensou Álvaro, e indicando uma cadeira ao recém chegado: — Queira sentar-se, — disse-lhe, e — tenha a bondade de dizer o que pretende deste seu criado.

—Desculpe-me, — respondeu-lhe o cavalheiro, passeando um olhar escrutador em roda da sala; — não é V. Sa que eu desejava falar, mas sim ao morador desta casa ou a sua filha.

Álvaro estremeceu. Estava claro que aquele mancebo, se bem que nenhuma aparência tivesse de um esbirro, andava à pista de Isaura. Todavia no intuito de verificar, se era fundada a sua apreensão, antes de chamar os donos da casa, quis sondar as intenções do visitante.

— Não obstante, — respondeu ele, como estou autorizado pelos donos d casa a tratar de todos os negócios, pode V. Sa dirigir-se a mim, e dizer o que deles pretende.

— Sim, senhor; não ponho a menor dúvida, pois o que pretendo não é nenhum mistério. Constando-me com certeza, que aqui se acha acoutada uma escrava fugida, por nome de Isaura, venho apreendê-la...

— Nesse caso deve entender-se comigo, que sou o depositário dessa escrava.

— Ah!... pelo que vejo, V. Sa é o senhor Álvaro!...

— Um criado de V. Sa .

— Bem; muito estimo encontrá-lo por aqui; pois saiba também que eu sou Leôncio, o legítimo senhor dessa escrava.

Leôncio!... o senhor de Isaura! Álvaro ficou como esmagado sob o peso desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e atônito, contemplou por alguns instantes aquele homem de sombria catadura, que lhe apresentava aos olhos, implacável e sinistro como Lucifer, prestes a empolgar a vítima, que deseja arrastar aos infernos. Suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angústia apertou-lhe o coração.

— É ele!... é o próprio algoz!... ai, pobre Isaura!... — foi este o eco lúgubre, que remurmurou-lhe dentro d'alma enregelada pelo desalento.

GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura. São Paulo: Edições Melhoramentos, s/d, p.128-130.

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