ANGÚSTIA

Penso na morte de meu pai. Quando voltei da escola, ele estava estirado num marquesão, coberto com um lençol branco que lhe escondia o corpo até a cabeça. só ficavam expostos os pés, que iam além de uma das pontas do marquesão, pequeno para o defunto enorme. Muitas pessoas se tinham tornado donas da casa: Rosenda lavadeira, padre Inácio, cabo José da Luz, o velho Acrísio.

Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. Estava espantado, imaginando a vida que ia suportar, sozinho neste mundo. Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia. Ouvia o barulho de um descaroçador de algodão, próximo, no Cavalo-Morto. E via o corredor da nossa casa, por onde passavam a batina de padre Inácio, a farda de cabo José da Luz, o vestido vermelho de Rosenda e o capote do velho Acrísio.

Que ia ser de mim, solto no mundo? Pensava nos pés de Camilo Pereira da Silva, sujos, com tendões da grossura de um dedo, cheios de nós, as unhas roxas. Eram magros, ossudos, enormes. O resto do corpo estava debaixo do lençol branco, que fazia um vinco entre as pernas compridas. eu não podia ter saudade daqueles pés horríveis, cheios de calos e joanetes. Procurava chorar – lembrava-me dos mergulhos no poço da Pedra, das primeiras lições do alfabeto, que me rendiam cocorotes e bolos. Desejava em vão sentir a morte de meu pai. Tudo aquilo era desagradável. – "Isto é um cavalo de dez anos e não conhece a mão direita."

Agora eu tinha catorze, conhecia a mão direita e os verbos.

Voltei à sala, nas pontas dos pés. Ninguém me viu. Camilo Pereira da Silva continuava escondido debaixo do pano branco, que apresentava no lugar da cara uma nódoa vermelha coberta de moscas. Rosenda queimava alfazema num caco de telha. Seu Acrísio não seria para nada. Era impossível saber onde se fixava o olho de padre Inácio, duro, de vidro, imóvel na órbita escura. Ninguém me viu. fiquei num canto, roendo as unhas, olhando os pés do finado, compridos, chatos, amarelos.

Sempre abafando os passos, dirigi-me novamente ao fundo do quintal, com medo daquela gente que nem me havia mandado buscar à escola para assistir à morte de meu pai. Até a preta Quitéria se esquecera de mim. Ao passar pela cozinha, encontrei-a mexendo nas panelas e lastimando-se. Sentei-me na prensa, cansado, o estômago doendo. Que iria fazer por aí à toa, miúdo, tão miúdo, que ninguém me via? encostei-me ao muro, escorreguei por cima da madeira bichada, adormeci pensando nos mergulhos do poço da Pedra, nos bolos e nos pés de Camilo Pereira da Silva. E, enquanto dormia, ouvia a cantiga dos sapos no açude da Penha, o burburinho dos intrusos que se acavalavam no corredor, o barulho do descaroçador de algodão no Cavalo-Morto. vozes chegavam-me, confusas, e eu não conseguia apreender o sentido delas. visões também. Via a casa da fazenda, arruinada, os bichos definhando na morrinha, o chiqueiro bodejando, relâmpagos cortando o céu. A chuva caía, eu andava pelo pátio, nu, montado num cabo de vassoura. quem me acordou foi Rosenda, que me trazia uma xícara de café.

– Obrigado, Rosenda.

Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva. corri para a sala, chorando. Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos.

Na casa escura, cheia das lamentações de Quitéria, não encontrei sossego. Adormeci pela madrugada.

No dia seguinte os credores passaram os gadanhos no que acharam. Tipos desconhecidos entravam na loja, mediam peças de pano. Chegavam de chapéu na cabeça, cigarro no bico, invadiam os quartos, pregueavam. Enterrar os mortos, obra de misericórdia. O morto estava enterrado. Padre Inácio e os outros sumiram-se. E os homens batiam os pés com força, levavam as mercadorias, levavam os móveis, nem me olhavam, nem olhavam Quitéria, que se encolhia gemendo "Misericórdia!", como quando o trovão rolava no céu e os bichos iam abrigar-se no copiar da fazenda.

Passei a noite a um canto da sala de jantar, numa rede encardida, a cabeça debaixo do cobertor, com medo da alma de Camilo Pereira da Silva. Pensava na rede armada no copiar, no poço da Pedra, no pátio branco onde se arrastavam cascavéis e jararacas. Aquilo agora tinha outro dono. O cupim continuava a roer os mourões do curral e os caibros da casa, o carro de bois apodrecia sob as catingueiras, os bichos bodejavam no chiqueiro. Mas a sombra do velho Trajano não brincava com os dedos dos pés, amaro vaqueiro não cortava mandacaru para o gado, a cachorra Moqueca tinha morrido, Camilo Pereira da Silva não folheava o romance.

Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereira da Silva? Provavelmente rondava a casa, entrava pelas portas fechadas, olhava as prateleiras vazias. As outras almas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, Sinha Germana, não me atemorizavam; mas aquela, tão próxima, ainda agarrada ao corpo, dava-me tremuras. O suor corria-me pelo rosto. Como estariam os pés de Camilo Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, verdes, com pedaços ficando pretos.

RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Martins Editora, 10a Ed., s/d. p.29-31.

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