A TESTEMUNHA

O céu se retira como um livro que se enrola.

Um anjo blindado solta os sete pecados mortais.

Mulheres-cavalos galopam furiosamente nas ruas,

Homens ajoelham-se diante do sexo duma fêmea,

Outros diante dum ídolo de ouro e prata.

Poderosos refletores iluminam milhares de sovacos.

Quem passeia no mar, quem sonha no mar

Se o mar está tinto do sangue derramado das virgens.

Mil bêbedos fuzilam o coração de Jesus.

Chacais hienas e urtigas invadem a alma dos ditadores.

Crianças nascem nos tanques ao som de um clarim.

As cidades transbordam de famintos,

Famintos de comida ou da palavra de consolo.

Poeta cobre-te de cinzas, volta à inocência,

Impede que se derrame o cálice da ira de Deus,

Tu que és a testemunha sustenta o candelabro,

Monta o cavalo branco e reconstrói o altar

Onde se transforma pão e vinho,

Indica à turba as profecias que se hão de cumprir,

Revela aos presos olhando através das grades

Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo,

Descerra os véus da criação, mostra a face do Cristo.

MELO Neto, João Cabral de (org.). Murilo Mendes - Antologia Poética. Brasília: INL, 1976, p. 33.

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