CANAÃ

Não se passou muito tempo sem que o baile entrasse em plena animação. A sala, depois que a noite avançara, fora mais iluminada, a música não cessava de tocar, e todos se divertiam alegremente. Agora é que se podia ver a variedade de gente aglomerada na casa de Jacob. Ali estavam negociantes do Cachoeiro, com as mulheres, caixeiros da cidade, tropeiros, lavradores, criadas e todos reunidos numa grande promiscuidade, sem separação de classes. Diante de Milkau que, sentado a uma janela aberta, acompanhava a festa, passou, na série de pares de uma marcha polaca, uma jovem de flexível graça, de movimentos ondulantes, voluptuosos, distinguindo-se do resto das outras raparigas, desengonçadas ou morosas, arrastadas com estrépito pelos seus pares. Um homem de tosca figura, que estava ao lado de Milkau, referiu-se a ela.

– Não há nenhuma que seja capaz de chegar a Luíza Wolf.

– Realmente é muito graciosa.

– Ah! É preciso conhecê-la para saber que não é só no baile; é em tudo assim. Parece que não cansa de levantar aquela cabecinha. Amanhã estará trabalhando com o mesmo ar...

- Naturalmente é uma colona...

– Não; é criada no Cachoeiro, e o patrão dela é aquele mesmo que é o seu par... Martin Fidel. Não conhece?

– Não.

– Pois admira, é um dos negociantes mais ricos da cidade; a família está toda aqui. A mulher já é velha como ele... Ah! lá vai ela ao braço daquele mocinho alto, de nariz grande, não vê? É um colono e filho de colono no Jequitibá. O pai dele também está dançando; é aquele baixo, gorducho, barbado e de chapéu na cabeça; o par é a criada, uma desenxabida... como vê.

Os dançantes continuavam no compasso marcial da polaca, executando variadas figuras, ora desenhando meias-luas, ora separando-se em alas, marchando frente a frente, ora fazendo evoluções de homens e mulheres, separados, para se reunirem depois de diferentes voltas. Os movimentos eram tardos e pesados; dentro de sapatos grossos ferrados, batendo fortemente os pés no assoalho, arrastando-se com esforço, faziam um barulho seco, enorme, que dominava as vozes dos instrumentos. Quando a contradança parava, os pares voltavam-se num mesmo instante como por uma combinação mágica, e todos livres se moviam vagarosamente, procurando os bancos encostados às paredes das salas ou aos cantos das janelas. Muitos saíam até ao terreiro para se refrescar; namorados passeavam ali no escuro, abraçados; velhos fumavam o seu cachimbo, resmungando conversas preguiçosas, até que de novo a música dava o sinal e todos voltavam à sala, em ordem, sem o menor embaraço, passando a dançar automaticamente, de charuto ou cachimbo ao queixo, e chapéu na cabeça, enquanto as mulheres amarravam lenços ao pescoço, por causa do suor que lhes escorria da fronte.

Milkau estava só; o seu informante tinha-o abandonado, farto de lhe relatar coisas da colônia. Lentz desde muito tempo não aparecia na sala, e o amigo pensou que, fatigado daquelas simples e monótonas danças, estivesse no terreiro passeando solitário. Felicíssimo não saía da sala de jantar, onde com amigos alemães continuava a cantar e a beber. De vez em quando, ao menor silêncio da música, as vozes deles, alegres, entoadas, entravam num grande alvoroço.

Junto de Milkau, no mesmo banco, sentaram-se duas mulheres. Numa delas reconhece ele a mesma que na capela o fitara durante o seu sono. Estavam ali, a descansar bem perto dele, aqueles mesmos olhos meigos e infinitos sobre os quais via boiar imagens doloridas que seriam a vida e o amor da rapariga. Esta respirava ofegante, tinha um ar fatigado e sentava-se num pesado abandono. Também da sua parte ela não deixou de acompanhar a furto o vizinho e, às vezes, mesmo com certa ousadia, o mirava nos olhos, plácida e inocente. Havia nela certa beleza, uma distinção maior do que era comum nos colonos; o porte era gracioso, o busto erguido, porém de um contorno farto, as mãos brancas, talvez longas demais, saíam dos braços como cabeças de galgo. Mas o que ela tinha de superior era a fronte aberta, era o cabelo louro, fofo, volátil, era a expressão da boca, da sua boca descorada, mas úmida e bondosa. Alguns minutos depois, tocou de novo a música uma valsa, e quase todos foram dançar. Milkau então falou à vizinha.

– Não dança?

Ela não se intimidou ouvindo a voz dele, até então silencioso e tranqüilo. Respondeu prontamente:

– Não; não posso, pois não me sinto bem; mas, se quer um par, aqui tem esta minha amiga, que é uma das melhores na valsa.

E com gesto de carinho quase maternal, pegou na mão da outra rapariga, que se deixou acariciar negligentemente, como habituada àquelas maneiras da amiga.

Milkau ficou meio confuso e desculpou-se, confessando que não sabia dançar. E a sua interlocutora:

– É o que me acontece pretextar, quando não me sinto bem... Mas ninguém me acredita. Vejam só...

E sorriu levemente. A voz dela era um canto íntimo, sonoro, e como que rasgava um tênue véu para mostrar a deliciosa paisagem da sua alma. E como em toda a voz humana, o acento da sua era uma revelação da personalidade íntima; pela voz, que traduz a música do cérebro, percebem-se as qualidades secretas de cada espírito, conhece-se a nobreza ou a grosseria da raça ou do grupo moral a que pertencemos.

Um rapaz se aproximou, e sem dizer uma palavra, à moda do lugar, tomou pelo pulso a outra moça, arrastando-a para a dança. A rapariga ergueu-se e, voltando para a amiga, disse radiante e rápido:

– Maria, onde me esperas?... Não quero me separar de ti. Tenho tanto que te dizer...

– Por aqui mesmo. Neste banco ou na janela.

Quando a jovem partiu arrebatada pelo par, Maria disse a Milkau:

– Não lhe parece tão boazinha? É filha de um colono do Luxemburgo; há muito tempo não nos víamos, e hoje tem sido um regalo...

– Oh! desde manhã andamos nesta roda-viva. Lembro-me de tê-la visto na capela do Jequitibá, referiu Milkau.

– Sim. É verdade, recordo-me bem de que não estávamos muito longe um do outro.

– Por sinal que eu dormi...

Maria enrubesceu, mas imediatamente retomou o fio da conversa.

– Fazia um calor terrível... E o pastor não o divertia, não é verdade?

– Não sei... Ao contrário, sentia um bem-estar imenso, e o sono me veio como um arrebatamento feliz.

– Deixe lá, replicou meio confiada e íntima, que às vezes seria melhor passar a vida a dormir...

– Já vejo que converso com uma grande preguiçosa...

– Eu? Nunca... volveu com vivacidade a rapariga. Não é por preguiça... seria para esquecer tantos aborrecimentos que desejaria um grande sono...

Acabou a frase com uma voz sumida e vagarosa.

– Aborrecimentos? Imagino a que coisas simples dá este triste nome, observou Milkau.

Ela não respondeu e ligeiramente abaixou os olhos; quando logo depois os ergueu, mudou de assunto.

– Como é belo dançar!

Com a sua mão fina fazia um aceno afável às amigas que passavam, alucinadas no movimento aéreo da valsa.

Milkau ia achando prazer em se entreter com a rapariga, que também ao seu lado não sentia o menor constrangimento e se exprimia sem embaraço, como a um velho conhecido.

Quando a música parou, os pares se desfizeram e cada um dos dançantes tomou direção diversa.

– Tu vês, disse Maria à amiga, não me mexi daqui à tua espera.

– Eu sabia. E agora queres dar um passeio ou preferes ficar aqui? perguntou a outra arquejando de cansaço e sentando-se instintivamente.

– Oh! meu Deus! Passear, quando estás que não podes? Não, amor, descansa um pouco.

– Talvez, observou Milkau, fosse preferível, para sua companheira, sentar-se à janela; as cadeiras ali estão desocupadas. Vamos para lá: o ar fresco lhe dará forças.

Levantou-se, e as moças correram sôfregas para as cadeiras indicadas, receosas de perdê-las. O primeiro olhar deles foi para o quadro de fora. toda a terra estava inundada de um luar branco; as nuvens, descendo no céu, desmanchavam-se no horizonte, e o grande campo vaporoso, livre, sem estrelas e desmaiado ia se transformando em um pavimento de cristal, puro, rijo, transparente. O verde das árvores adoçava-se à luz diamantina; a torrente rolava borbulhando, um vento manso balançava os ramos, e destes as sombras ainda longas dançavam inquietas.

– Que é isto? interrogou Maria, meio assustada por um grande barulho de vozes, que vinha da sala de jantar para o lugar do baile.

Todos se precipitaram para indagar do que se passava. Havia grande discussão em vozes altas e agudas mas tudo cortado por atroadoras e bruscas gargalhadas. Todavia, Maria e a companheira não estavam tranqüilas, pensando que uma grande rixa se travava ali. Milkau saiu para ver o que se passava, e pouco tempo depois voltou.

– Não é nada. O agrimensor Felicíssimo entende que já basta destas danças estrangeiras e que agora se deve passar às danças brasileiras... Os músicos não sabem como executá-las, os rapazes protestam contra a inovação, que eles ignoram, o agrimensor insiste, ensaia alguns passos, assobia, quer forçar os músicos a tocarem...

– E afinal? perguntou Maria.

– Afinal parece que Felicíssimo vencerá, e veremos alguma dança da terra.

De fato, o agrimensor conseguira impor os seus desejos, e arranjara que os músicos de experiência em experiência lhe dessem uma peça, cujos compassos seriam mais ou menos os da dança que premeditara. Depois deste acordo, os músicos vieram para os seus lugares, e a gente ansiosa correu para a sala, num burburinho de risadas, para conseguir um bom lugar. Depois sucedeu um silêncio de espera, ninguém se movia mais na sala, livre para a dança; quase todos estavam sentados, e muitos amontoados às portas e janelas. Junto aos músicos, Felicíssimo cantarolava o andamento. Não tardou, porém, que a orquestra, afora afinada, começasse a tocar uma peça arrastada e voluptuosa. Alguém perguntou ao agrimensor o que ia ele dançar. Felicíssimo, cambaleando, com os olhos tortos e compridos, saiu para o meio da sala, gritando com voz difícil:

– É o chorado, meu povo!

E, erguendo e abaixando os braços, ensaiava estalar os dedos como castanholas. Mas nenhum som produziam as suas mãos dormentes. A música suspirava gemidos lânguidos, e o dançarino só, no meio da casa, fazia trejeitos desconexos, desengraçados, medonhos. Rodava sobre si mesmo, acocorava-se, arrastava a perna, e jamais um gesto se casava com o compasso da música. riam em torno, achando aquilo estúpido e grotesco. A embriaguez do agrimensor era completa, e o inutilizava inteiramente. Felicíssimo deu mais algumas voltas, e afinal, como numa guinada de navio, o seu corpo se arrojou rápido, violento contra a parede. Foi uma barafunda; todos gritavam de susto, uns fugiam abandonando os lugares, outros riam do espetáculo. O agrimensor apoiou-se com a mão à parede, livrando a cabeça, e caiu brusco e pesado numa cadeira vazia. Por entusiasmo, por prazer, a música continuava. Felicíssimo ainda tentou erguer-se, mas os seus vizinhos o sustiveram na cadeira, com medo de alguma queda desastrada. Ele deixou-se prender, agradecendo-lhes com o enternecido olhar de bêbado manso.

Durante algum tempo ninguém se moveu e a musica prosseguia solitária nos seus largos e chorosos compassos. Mas, de repente, como um fauno antigo, Joca pulou na sala e principiou a dançar. A sua alma nativa esquecia por um momento essa dolorosa expatriação na própria terra, entre gente de outros mundos. Arrebatado pela música que lhe falava às mais remotas e imorredouras essências da vida, o mulato transportava-se para longe de si mesmo e transfigurava-se numa altiva e extraordinária alegria. todo o seu corpo se agitava num só ritmo; a cabeça erguida tomava uma expressão de prazer ilimitado, a boca entreaberta, com os dentes em serra, sorria; os cabelos animavam-se livremente, ou empinados e eriçados, ou moles caindo sobre a fronte; os pés voavam no assoalho e, às vezes, paravam, sacudindo-se os membros numa dança desenfreada; as mãos, ora baixas, estalando castanholas, ora unidas, saindo dos braços retesados, ora espalmadas no ar, e nesse gesto, ébrio de música, perfilado nas pontas dos pés, ele parecia, com os braços abertos, querer voar. Umas vezes, corria pela sala saracoteando o corpo, com os pés juntos num passo miúdo e repinicado; outras obedecendo ao compasso da música, vinha lânguido, requebrado, de cabeça inclinada e olhos compridos, e achegava-se a alguma mulher, quase de rastos, suspenso, querendo arrebatá-la numa volúpia contida, mas que se adivinhava febril, vertiginosa. Depois, erguia-se num salto de tigre, retomava a sua doidice, como num grande ataque satânico, agitava-se todo, convulso, trêmulo, quase pairando no ar, numa vibração de todos os nervos, rápido, imperceptível, que dava a ilusão de um instantâneo repouso em pleno espaço, como a dança de um beija-flor. Nesse momento a orquestra podia parar, fazer um silêncio que desequilibrasse tudo, Joca não perceberia a falta de instrumentos, pois todo ele, no seu corpo triunfal, na sua alegria rara, no impulso da sua alma, vivendo, espraiando-se na velha dançada raça, todo ele era movimento, era vibração, era música.

A cena continuou algum tempo com esse único personagem. Joca procurou um par, uma mulher que acudisse aos seus apelos, que correspondesse aos seus movimentos. Ninguém veio, ninguém sentiu o ímpeto de sacudir-se, de remexer-se ao ritmo daquela dança. todos tinham curiosidade e nada mais. Desolado, tomado de uma repentina tristeza, de uma saudade das suas companheiras de mocidade, das mulheres negras, que sentiam como ele, pouco a pouco foi cansando... O peito ofegava, as pernas morenas não se retesavam com a mesma energia de pouco antes, com a flexibilidade vigorosa do pau-d'arco...

Exausto, ele derreou o corpo combalido, e o último intérprete das danças nacionais foi cedendo o terreno aos vencedores, enquanto outra música, outra dança, invadia o cenário. Era a valsa alemã, clara, larga, fluente como um rio.

Na sala os pares voavam num frenesi. E entre estes se foi a amiga de Maria. Fora havia mais luar, as sombras minguando se resumiam mais fixas. Numa das janelas um par cochichava, esquecido de dançar. Era uma longa, infindável e sussurrante palestra. Um momento a rapariga alteou a voz, e, toda entregue à paixão, declamou como na velha balada: – Ob ich dich liebe? Frage den Stern... Maria estremeceu ouvindo o canto de amor, e sem saber o que fazia, fitando com os olhos ardentes o céu, apontou a lua, dizendo com voz sumida e trêmula:

– Que tristeza!

O pensamento de Milkau, como obedecendo a um chamado estranho, subiu ao astro morto. Ela imaginou a solidão de um mundo sem vida, essa terra deserta, marchando como um cadáver fantástico na estrada do infinito... Ele pensou que algum dia também, aqui nesta terra radiante, viçosa e feliz, toda a vida se acabaria, e uma imensa tristeza, um grande silêncio reinaria nestes mesmos cantos cheios de movimento e de alegria. E para quantos não começara o isolamento, princípio da morte... Pensou na sua própria vida, no seu destino, nesta solidão em que ia passando a existência, envolto como num véu intangível que o não deixava sair para o mundo nem permitia que o mundo viesse a ele. Sua vida triste, sem uma companheira, sua vida casta e mística, pior que o eterno frio...

Acabara a dança e era a hora da separação. Um velho chegou à janela onde estava Maria e chamou-a. A moça despediu-se de Milkau, como de um antigo conhecido, que no dia seguinte se tornaria a ver. Por sua vez, Milkau, já recomposto daquele instantâneo desfalecimento, foi procurar Lentz, encontrando-o, entre vários colonos, no terreiro, ao ar livre.

– Oh! pensei que fosses o último a deixar esta casa, gritou Lentz, recebendo jovial o companheiro. Não sabia que eras tão grande apaixonado de festas.

– Distraí-me vendo os outros alegres e quis te dar a liberdade de te divertires ao teu modo.

– Aqui estive, a conversar sobre a Alemanha com estes amigos. E falamos também de outra Alemanha que há de vir, no futuro... Não é verdade, camaradas?

Os outros aplaudiram a profecia.

– Bem, disse Milkau, mas agora cuidemos de ir para casa.

– A caminho! Adeus, amigos. Até um dia!

Bateram durante horas e horas a mesma estrada de manhã percorrida. Um momento, depois de passarem por um grande cafezal belo em sua viçosa negrura, na encosta de uma montanha majestosa, começaram a ver cruzes pretas e pedras brancas por entre os pés de café.

– Que é isto? Perguntou Lentz.

– Um cemitério! respondeu Milkau.

E acrecentou:

– Vê tu. Não há em Canaã lugar para a morte. A terra dá o menos possível aos túmulos; eles, escassos e raros na fralda da montanha, não apagam a Luz nem dão sombra sobre a Vida, que os enlaça e domina na força do seu triunfo.

ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Ática, 1977

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