CARTA A EL_REI DOM MANUEL SOBRE O ACHAMENTO DO BRASIL

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E assim seguimos nosso caminho por este mar – de longo – até que na terça-feira das oitavas de Páscoa – eram os vinte e um dias de abril – estando da dita ilha distantes de 600 a 670 léguas, conforme dados dos pilotos, topamos alguns sinais de terra: uma grande quantidade de ervas compridas, chamadas botelhos pelos mareantes, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. No dia seguinte – quarta-feira pela manha – topamos aves a que os mesmos chamam de fura-buchos. Neste mesmo dia, à hora de vésperas, avistamos terra! Primeiramente um grande monte, muito alto e redondo; depois, outras serras mais baixas, da parte sul em relação ao monte e, mais, terra chã. Com grandes arvoredos. Ao monte alto o Capitão deu o nome de Monte Pascoal; e à terra, Terra de Vera Cruz.

Em seguida o Capitão mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças e, ao pôr-do-sol, numa distância aproximada de seis léguas da terra, lançamos âncora, em dezenove braças – ancoragem limpa. ali permanecemos por toda aquela noite. No dia seguinte, quinta-feira pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, mantendo os navios pequenos adiante, por dezessete, dezesseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra onde todos nós lançamos âncoras defronte à boca de um rio. A ancoragem se completou mais ou menos às dez horas.

Dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.

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E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos a mandado do Capitão, por ser homem vivo e competente para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto por todas as partes; e tomou, então, dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa jangada. Um deles trazia um arco e seis ou sete flechas; e na praia andavam muitos com seus arcos e flechas, porém deles não fizeram uso em nenhum momento.

Imediatamente, e era já de noite, Afonso Lopez levou os dois mancebos até o Capitão, em cuja nau foram recebidos com muitos agrados e festa.

A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos os dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco e realmente osso, do comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do lábio, e a parte que fica entre o lábio e os dentes é feita à roque-de-xadrez, ali encaixado de maneira a não prejudicar o falar, o comer e o beber.

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que verdadeiramente de leve, de boa grandeza e, todavia, raspado por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da covinha, de fonte a fonte, na parte por detrás, uma espécie de cabeleira, feita de penas de ave, amarela, do comprimento de um coto, muito basta e cerrada, que lhe cobria a nuca e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como cera – mas em verdade não o era – de maneira que a cabeleira ficava mais redonda e muito basta, com um todo igual, e não era necessário mais lavagem para a levantar da cabeça.

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Então começaram a chegar outros mais. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água e os carretavam até os batéis. Em verdade eles não chegavam até a borda do batel: próximo deles, lançavam os barris que nós pegávamos. E depois pediam que lhes dessem alguma coisa por isso. Nicolau Coelho levava consigo cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de modo que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Trocavam arcos e flechas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que alguém desejasse dar-lhes.

A partir daquele momento não mais vimos os dois mancebos que conosco estiveram a bordo.

Muitos deles ou a maioria dos que estavam ali traziam aqueles bicos de osso nos lábios. E alguns que deles eram desprovidos, tinham os lábios furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelho de borracha; outros traziam três daqueles bicos, um no meio e os dois outros nos lados da boca. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade sua própria cor, e metade de tintura preta, como azuladas; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

Ali, por essa ocasião, não houve mais fala nem entendimento com eles, pois a algazarra era tamanhamente bárbara que ninguém mais se podia entender. Acenamos-lhes que fossem embora. Assim o fizeram e se encaminharam para o outro lado do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. então, retornamos às naus. (...) então eles mandaram o degredado que não queriam que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para dar de presente ao chefe, se um chefe ali existisse. Não se preocuparam de tomar-lhe coisa alguma, pelo contrário, mandaram-no de volta com todas as suas coisas. mas então Bartolomeu Dias o fez retornar, ordenando que lhes desse tudo aquilo. Ele retornou à praia e deu todos os presentes, diante de nossos olhos, àquele que o agasalhara no primeiro encontro. Logo voltou e nós o trouxemos para bordo.

Esse que a agasalhara era já de idade e andava por galanteria cheio de penas pegadas pelo corpo, de tal maneira que parecia um São Sebastião cheio de flechas. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros ainda, de vermelhas; e outros mais, de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura; e certamente era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha – que ela não tinha! – tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, provocaria vergonha, por não terem as suas como a dela. Nenhum deles era circunciso, mas, ao contrário, todos eram assim como nós.

E com isto nos tornamos e eles se foram.

À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel, com todos nós e com os outros capitães em seus batéis, a folgar pela baía, defronte à praia. Mas ninguém desceu em terra, porque o Capitão assim o ordenou, apesar da praia se apresentar deserta.

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Enquanto assistíamos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como ontem, com seus arcos e flechas, e andavam folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E depois de acabada a missa, quando sentados nós escutávamos a pregação, muitos deles se levantaram e começaram a tocar corno ou buzina, saltando e dançando por um bom tempo. E alguns deles se metiam em jangadas, – duas ou três que lá tinham – as quais não são feitas como as que eu já vi: são somente três traves, atadas entre si. E nelas se metiam quatro ou cinco, ou quantos assim decidissem, não se afastando quase nada da terra, só até onde dava pé.

Acabada a pregação, o Capitão voltou aos batéis, acompanhado por todos nós, com nossa bandeira alta.

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E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que nos entenderem, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde parecer a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano para que se cobrisse; e o puseram em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, com respeito ao pudor.

Ora veja, Vossa Alteza, quem em tal inocência vive, se se converterá, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.

(...)

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste ponto temos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, algumas vermelhas, outras brancas; e a terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque a estender d'olhos não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.

Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre-Douro e Minho. porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

As águas são muitas e infindas. E em tal maneira é grandiosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das águas que tem.

Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.

E quem não houvesse mais que ter aqui Vossa Alteza esta pousada para a navegação de Calicute, isso bastava. mais ainda, disposição para nela cumprir-se – e fazer – o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber: acrescentamento da nossa Santa Fé!

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se me alonguei um pouco, Ela me perdoe. Porque o desenho que tinha de Vos tudo dizer, me fez pôr assim tudo pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer cousa de Vossa serviço for, Vossa Alteza há de ser por mim muito bem servida, a Ela peço que por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tome a Jorge de Osório, meu genro – o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha

CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta. Introdução atualizada e Notas Silvio Castro. Porto Alegre: L & PM Editores, 1985. p. 75-78; 81-83; 96-98.

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