FOGO MORTO

(...) Era o capitão Tomás Cabral de Melo, senhor do engenho Santa Fé, chefe do Partido Liberal, pai de filha educada em Recife, com piano em casa, que falava francês, que bordava com mãos de anjo. O capitão, nas tardes de domingo, quando nada tinha que fazer, deitava-se no marquesão da sala de visitas e chamava a filha:

– Amélia, vem tocar uma coisinha.

A casa-grande do Santa Fé enchia-se da valsa triste da moça. A mãe deixava a cozinha, os negros a acompanhavam para ouvir D. Amélia tocando no seu enorme piano, de som tão bonito. O capitão fechava os olhos, babava-se na harmonia terna que a filha arrancava do teclado. Era um primor. A mulher, cansada, de pele encardida do sol, de mãos grossas dos trabalhos da cozinha, de debulhar milho para negro, de cortar bacalhau, iluminava-se de alegria. Tinha mais uma filha nos estudos, Olívia. Todos em sua casa não deviam ser como ela fora, só do trabalho grosseiro, da vida como de negro cativo. O marido, espichado no marquesão, babava-se com a filha prendada. Não queria para Amélia um marido assim como Tomás, homem que só tinha corpo e alma para o trabalho. Homem devia ser mais alguma coisa para melhor do que era Tomás. D. Amélia tocava as suas valsas com o coração, as varsovianas tomavam conta de suas mãos, de seu sentimento. O capitão dormia com a filha na música, aos domingos, com os negros parados, com a terra dando vida às sementes. A casa-grande do Santa Fé, naquela tarde de concertos, tinha outra alma. Mãe, pai, negros participavam de uma existência bem diferente da que viviam. Outra vida, outra força mandava naquela gente enfeitiçada. As negras diziam que a menina tinha umas mãos que eram como se fossem uma vara de condão. O capitão Tomás Cabral de Melo chegara ao ponto mais alto de sua vida. O que mais podia desejar um homem de suas posses? Família criada, engenho moente e corrente, gado de primeira ordem, partidos de cana, roçado de algodão, respeitado pelos adversários. Criara um engenho. Disto se orgulhava. Não fora ali, como os outros ricos da terra, encontrar tudo feito para continuar. Tudo saíra de suas mãos, era obra exclusiva dele. Lá estava no frontão de sua casa-grande a data de 1850. Naquele ano dera um pintura nova na casa. Fora o ano da chegada do piano. Amélia voltava do colégio, moça como não havia na várzea, cheia de prendas, dona de muito saber. mas foram-se os anos, e o Capitão Tomás tinha uma mágoa. Por que não se casara a sua filha mais velha? O que faltava para encontrar um marido na altura de seus merecimentos? Não era feia, tudo teria para ser uma esposa completa. E os anos se iam e a filha do capitão não se casava. Quando a ouvia no piano, media as coisas com tristeza. Então naquela Ribeira não aparecia um homem que fosse digno de sua filha? A mulher não lhe falava coisa nenhuma, mas ele sabia que devia sofrer. Afinal de contas, por que pensar nestas coisas? Melhor que ele deixasse que o tempo resolvesse tudo. O Santa Fé dava os seus mil pães de açúcar, as suas sacas de lã, e tinha pasto para as suas duzentas reses. E ainda contava com quarenta peças de escravatura. Não queria mais do mundo. Por mais de uma vez viera à sua porta bater senhor de engenho de grandes terras, para se valer de sua bolsa. emprestava e os juros que cobrava não eram de arrancar a carne de ninguém. O seu dinheiro era o seu sangue, a sua vida. A várzea, as vazantes, os altos do Santa Fé, era tudo da melhor qualidade. Lembrava-se de conversas com outros senhores de engenho. Todos lhe gabavam as safras, o açúcar, o gado, os roçados de algodão, as vazantes de milho. Nas mãos do Capitão Tomás tudo rendia, tudo dava dinheiro. É verdade que tinha uma mulher que era a metade do seu esforço. Cuidava ela dos negros, cosia o algodãozinho para vesti-los, fazia-lhes o angu, assava-lhes a carne. A sua escravatura era de gente boa. Trouxera do Ingá negros de bom calibre.

Nunca comprara peça barata, resto de gente que só lhe desse trabalho. negro ruim e barato deixava para os pechincheiros. Queria povo para o trabalho, negra que parisse braços e mais braços para os seus partidos. Tudo que o Capitão Tomás pretendeu fazer no Santa Fé saiu como ele bem quis. Mas a filha que tocava piano como uma moça da praça, que lia livros bonitos, que lhe custara tanto dinheiro nos estudos, não se casava. E os homens da Ribeira não eram para ela. Não lhe batesse em sua porta filho de João Alves do Canabrava, que ele não dava uma filha em casamento por preço nenhum. Melhor ficar para titia do que ligar-se àqueles vadios que andavam soltos de canga e corda, comendo as negras do pai como pais-d'égua. E os filhos de Manuel César do Taipu? Tinham ido para os estudos, eram doutores. Seriam dignos de Amélia? Não seriam. Aquela gente do Taipu tratava mulher como bicho. Amélia era uma seda, uma flor de jardim. Não. Para vê-la casada com um daqueles animais, ele preferia que ficasse toda a vida com ele. Tinha dinheiro de ouro que lhe daria para comprar um engenho para a filha. Um engenho de porteira fechada. Queria era que aparecesse um homem que fosse branco, de bons modos, capaz de fazê-la feliz, de tratá-la como ela merecia.

REGO, José Lins do. Fogo Morto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 205-208.

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