JUBIABA

Sentinela

Arminda, a filha de sinhá Laura, que ao terminar o trabalho corria pelos campos a sua meninice de doze anos, não corre mais e trabalha com o rosto angustiado. Até uma vez pediu licença a Zequinha para ir em casa. É que, há uma semana, sinhá Laura está estendida em cima de uma cama, inchando com uma doença desconhecida. Antes Arminda era alegre e tomava banho no rio, nadando como um peixe, excitando os homens com o espetáculo do seu corpo de menina. Agora apenas trabalha porque se não trabalha morre de fome.

Na terça-feira nem no trabalho apareceu. Totonha, que veio da casa da doente, avisou:

– A velha esticou as canelas...

Os homens pararam o trabalho por um minuto. Um disse:

– Já estava na idade...

– Está inchada que nem um boi... Faz até medo...

– Que doença mais esquisita...

– Ninguém me tira que aquilo foi espírito ruim...

Zequinha vinha chegando. Os homens se curvaram de novo sobre as folhas de fumo. Totonha falou com ele e depois avisou:

– Eu vou ficar com a menina. De noite tem sentinela...

O negro Filomeno segredou para Antônio Balduíno:

– Quem me dera ser eu. Sozinho com ela, era um Deus nos acuda...

O Gordo bebeu um trago de cachaça porque tinha muito medo de defunto. E, na hora do almoço, ficaram relembrando histórias de defuntos conhecidos, contando casos de doenças e de mortes. O negro Filomeno não falava. Estava com um plano na cabeça. Pensava em Arminda, na frescura da sua carne moça.

Os fifós pareciam andar. A luz vacilante se aproximava da casa de taipa. Não se viam pessoas. Somente aquela luz vermelha que bruxuleava e mudava de lugar como uma alma penada. Na porta, Totonha recebia as visitas que vinham fazer a sentinela da morte. E distribuía abraços e recebia pêsames como se fosse parente de sinhá Laura. Estava com os olhos úmidos e narrava os sofrimentos da defunta:

– Coitada gritava tanto... Também com aquela doença danada...

– Aquilo era espírito...

– Deu de inchar, ficou com a barriga estufada...

– Agora descansou...

Uma mulher se benzeu. O negro Filomeno perguntou:

– E Arminda?

– Tá lá dentro chorando... Coitadinha, ficou sem ninguém no mundo...

Ofereceu cachaça que todos tomaram.

No único cômodo da casa dois bancos se alinhavam ao lado de uma parede. Alguns homens e mulheres, de pés descalços e cabeças descobertas, velavam a morta. Do outro lado da sala uma cadeira velha onde Arminda sentada chorava um choro sem lágrimas, intercalado de soluços altos. Tinha os olhos tapados com um lenço vermelho. Os recém-chegados foram até onde ela estava e apertaram-lhe a mão sem que ela se movesse. Não diziam palavra.

E no meio da sala, estendido em cima de uma mesa, que era nos dias comuns cama e mesa de jantar, estava o cadáver, inchado, parecendo querer estourar. Uma coberta de chitão, de grandes flores amarelas e verdes, cobria o corpo, deixando do lado de fora o rosto enrugado com a boca torcida e os pés enormes e achatados de dedos abertos. Os homens ao voltar espiavam o rosto da morta e as mulheres se benziam. Uma vela estava colocada perto da cabeça da defunta e despenhava a luz baça sobre o rosto parado, ainda torcido numa expressão de sofrimento. E aqueles olhos parados pareciam olhar fixamente os homens e as mulheres, que agora estavam todos sentados nos bancos e cochichavam. Uma garrafa de cachaça passou de mão em mão. Bebiam pelo gargalo em grandes tragos. dois homens saíram para fumar lá fora. Zequinha chegou e passou a mão na cabeça de Arminda. Então começaram as orações puxadas pelo Gordo:

"Senhor, tomai essa alma".

Os presentes respondiam em coro:

"Orai por ela...".

A garrafa de cachaça corria pela roda. Bebiam pelo próprio gargalo. A vela brilhava sobre o rosto da morta, que cada vez inchava mais. O coro vinha como um lamento:

"Orai por ela".

Antônio Balduíno levantou os olhos e espiou Arminda. Ela chorava no outro lado da sala. Mas o rosto inchado da defunta impede que ele veja direito.

Também o negro Filomeno olha para a órfã. Antônio Balduíno bem vê que os olhos do negro estão pousados nos seios de Arminda que sobem e descem com os soluços que lhe sacodem o colo. E Antônio Balduíno tem raiva. Murmura para o vizinho:

– Miserável do negro nem respeita os mortos...

Mas ele também olha os seios que se movimentam por baixo do vestido. De repente, o negro Filomeno desvia o olhar e espia as pessoas que estão na sala. Ele está com medo, todos estão vendo. De que será que tem medo o negro Filomeno? pensa Antônio Balduíno. E olha quase risonho o decote do vestido de Arminda. A luz do fifó bate em cima do começo dos seios. E quer entrar... Sim, a luz do fifó quer entrar pelos seios de Arminda como uma mão. Lá está ela tentando... Antônio Balduíno segue a cena com os olhos brilhantes. Afinal, parece que a luz conseguiu entrar pelo decote. Naturalmente agora está amassando os seios que sobem e descem. Antônio Balduíno sorri e quase murmura:

– Conseguiu a peste...

Mas agora ele também retira o olhar e está tremendo. Pois não é que a morta fixou nele os olhos parados com uma expressão de ódio? Antônio Balduíno olha o chão, espia as mãos grossas, mas sente que o olhar raivoso da defunta o acompanha. Pensa:

– Por que o diabo desta velha não toma tento com o peste do Filomeno que quer comer a filha dela?

Se recorda que ele também tem más intenções e foge do olhar da velha. Olha para o Gordo cuja boca se abre e se fecha cantando as rezas de defuntos.

Quer ver se pensa numa mosca entrando na boca do Gordo. Mas a morta está olhando para ele e Filomeno está espiando os seios de Arminda.

– Diabo da velha que ainda tá tomando conta da filha... Não já morreu...

– Hein? – fez o vizinho...

– Não disse nada...

O Gordo está cantando. Antônio Balduíno repete como todo mundo:

"Orai por ela".

Aquela moça é capaz de entrar na boca do Gordo. Ia entrando, o Gordo fechou a boca. Lá vai ela de novo. Parou no nariz. Está esperando que o Gordo abra novamente a boca. É agora. Mas a mosca levantou vôo e foi pousar em Arminda, no outro lado. O negro Filomeno se remexeu na cadeira. Antônio Balduíno fica imaginando como serão os seios de Arminda fora do vestido. Olhe que bicos grandes que eles têm. Chegam a formar uma bola no vestido. A mosca está sentada bem em cima de um deles, exatamente no esquerdo. Ela não usa porta-seios está logo se vendo. Os seus seios serão duros e carnudos... Por que será que ela chora? – pensa Antônio Balduíno... Tem uns olhos grandes, pestanudos. Com o soluço que agitou seu peito o seio quase pula fora do vestido. E a mosca fugiu. Foi pousar em cima do rosto da defunta. Como ela inchou! Quase não cabe mais na mesa. E o rosto então está enorme, a pele esverdeada e os olhos esbugalhados. Mas por que ela olha para Antônio Balduíno? O que é que ele está fazendo? Ele nem está olhando para Arminda. O negro Filomeno sim que não tira os olhos dela. Então por que a morta não o larga, não o deixa sossegado, olhando para onde quiser? E como está inchada, disforme. A mosca sentou em cima do nariz. Serão bagas de suor que brilham no rosto da defunta? Naturalmente ela quer oração. Antônio Balduíno em vez de estar rezando com os outros, está é espiando a filha dela. E o negro fez coro:

"Orai por ela".

Foi gozado porque ele disse tão alto que assustou Filomeno que repetiu tardiamente:

"Orai por ela".

Não era a hora. O Gordo já estava dizendo outra coisa. Passa a garrafa de cachaça. Antônio Balduíno tomou um gole grande e tentou espiar novamente Arminda. Mas a morta está implicando com ele. Agora incharam tanto os olhos que quando Balduíno espia não consegue ver mais que metade do rosto de Arminda. Vê bem, vê muito bem mesmo, os olhos da defunta que o acompanham com ódio. Será que ela adivinhou que ele vai pedir água à Arminda só para que ela vá com ele para o outra sala, onde ele poderá agarrá-la? Os mortos sabem tudo. Ela já soube com certeza e não o larga mais. Ele está vendo o rosto medonho da velha morta. Ninguém tem um rosto daquele. O rosto de Arminda é risonho. Mesmo quando ela está chorando, como agora, tem um rosto alegre. Por que será que existem pessoas assim/ O rosto da defunta está verde e cheio de bagas de suor. Está pegajoso. Antônio Balduíno esfrega as mãos uma na outra, querendo se livrar da visão. Espia para o teto. Mas sente que os olhos da morta estão fitos nele. Ficou muito tempo espiando as traves e as telhas pretas. De repente baixou a vista e olhou os seios de Arminda. Sorriu satisfeito: tapeou a velha morta. Mas foi pior, foi muito pior: ela ficou com a boca torcida de raiva, esbugalhou ainda mais os olhos. Tem uma mosca pousada na sua boca. Parece uma ponta de cigarro, preta da saliva. Antônio Balduíno tenta acompanhar as orações. E quando pensa que a morta não está mais olhando para ele, abre a boca para pedir água a Arminda. Mas lá estão os olhos da defunta bem postos em cima dos seus, num ar de desafio. Reza de novo. Bebe cachaça. Quantas vezes já teria passado por ele a garrafa? Essa está no finzinho. Quantas terão ainda que abrir? Numa sentinela se gasta muita cachaça... E agora que a morta não está espiando, Antônio Balduíno se levanta devagarinho, circunda a mesa onde está o cadáver, toca no ombro de Arminda:

– Venha me dar um gole d'água.

Ela se levanta. Vão para o quintal, no fundo onde está uma tina d'água em um caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote do vestido Antônio Balduíno vê os seios. Então segurou nos braços da menina e girou com ela que ficou de frente para ele, olhando-o espantada. Mas ele não vê nada a não ser aquela boca e aqueles seios que estão na sua frente. Vai apertar o abraço e a sua boca se dirige para a boca de Arminda, que ainda não compreende, quando os olhos da defunta chegam e se colocam entre os dois. A velha Laura deixou seu lugar em cima da mesa e se meteu entre eles. Ela está tomando conta da filha. Os mortos sabem tudo e ela sabia o que Antônio Balduíno pretendia fazer. Está ali entre os dois olhando o negro. Ele solta Arminda, põe as mãos nos olhos, derruba o caneco com água e entra na sala como um cego. A morta inchou ainda mais na mesa.

O negro Filomeno ri como quem compreendeu a idéia de Antônio Balduíno ao pedir água. Ele vai fazer o mesmo com certeza. Que besta – pensa Balduíno – ele está julgando que vai levar alguma vantagem. Quando chegar lá encontra a finada espiando para ele. A finada sabe de tudo, ela adivinha tudo... Porém os olhos da morta não acompanharam Filomeno. Será que ela vai deixar aquele negro imundo tocar em Arminda? Ele se levantou e pediu água a Arminda e a morta não fez nada. Antônio Balduíno murmura para o rosto impassível:

– Vá! Vá! Não está vendo aquilo? Não está vendo? Aquele negro é malvado...

mas a morta não atende ao aviso. Parece até que ela está rindo. Ouve-se um ruído lá dentro. Arminda volta para a sala e agora chora um choro diferente. O vestido está machucado no lugar dos seios. O negro Filomeno entra sorrindo. Antônio Balduíno torce as mãos com raiva, levanta e diz alto para o Gordo:

– Você não disse que ela é uma menina de doze anos? Cadê? Cadê a morta que não fez nada...

Zequinha diz:

– Tá bêbado...

Alguém cerra os olhos da morta.

AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Martins Editora, s/d. 22a edição, p. 164-169.

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