MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS

Manuel Antônio de Almeida

Leonardo, o "herói" de Memórias, nasce no início do século XIX, fruto da relação entre Leonardo Pataca, um alfaiate reles de Lisboa e Maria Hortaliça, durante a viagem para o Brasil, em busca de vida melhor. À pisadela recebida no pé, Maria dá, em troco, um beliscão nas costas da mão esquerda de Leonardo, o que, na tradição portuguesa, vale como uma declaração de amor. Portanto, ao desembarcarem no Rio, vão morar juntos, e logo se tornam visíveis os efeitos da união que, ao nascer, recebe o mesmo nome do pai.

Algum tempo depois, Leonardo, bebê robusto e chorão, é batizado; a madrinha é a parteira e o padrinho, o barbeiro, vizinho de frente, recebendo, daí por diante, o tratamento de "comadre" e "compadre". A criança, com o passar dos anos, cresce inquieta, revelando-se um peralta endiabrado.

Quando Leonardo tinha sete anos, o pai, Leonardo-Pataca, que aqui se torna meirinho (oficial de justiça), flagra a mãe em adultério. Enquanto enchia a mãe de socos e tapas, o menino traquina destroçava uns documentos, deixados sobre a cadeira. A mãe abandona pai e filho, retornando a Portugal com o amante. Pataca, por sua vez, não agüentando mais as estripulias do garoto, suspende-o pelas orelhas, dizendo: "és filho de uma pisadela e de um beliscão, mereces que um ponta-pé te acabe com a casta". Depois de um chute bem dado no traseiro, largou-o com o padrinho. Este, solteirão convicto, devota-lhe todo amor e ternura, fazendo vistas grossas às constantes diabruras da criança. Chega a ter tórridas discussões com uma vizinha intrometida, toda vez que esta o provoca, ridicularizando o peralta.

O compadre, que desconhecia a própria origem, aprendeu o ofício de barbeiro graças ao homem que o criara. Um dia, desligando-se desse passado, emprega-se em um navio negreiro. Tendo conseguido curar, pela sangria, várias pessoas a bordo, torna-se médico. Em uma das viagens, prestigiado pela tripulação, o capitão, à beira da morte, confia-lhe uma caixa repleta de dinheiro para ser entregue à uma filha, residente no Rio. Após sua morte, ao invés de fazer como fora recomendado, o compadre decide se tornar o herdeiro do morto, ficando com o dinheiro.

Ele já "arranjara-se na vida" e agora preocupa-se com o futuro do afilhado; quer vê-lo padre e, para tanto, trata de colocá-lo na escola. No primeiro dia de aula, Leonardo derrama tinta na cabeça de um colega e leva bolos de palmatória. Logo que conhece o prazer de cabular, passa as tardes fazendo diabruras com outro camarada, o sacristão da igreja da Sé. Após dois anos de muita vadiagem e palmatórias, e já tendo passado, sofrivelmente, por todo abecedário, consegue convencer o padrinho a deixá-lo apenas como sacristão na Sé. Iludindo-o compadre que acreditava estar preparando-o para a vida religiosa futura Leonardo consegue se ver livre dos estudos.

Enquanto o compadre cuida da educação do menino, o pai, Leonardo-Pataca, se ocupa de uma nova paixão: uma cigana que já o abandonara por outro. Como último recurso para a tê-la de volta, vai à casa de um "caboclo velho", que dava fortuna (lia a sorte), para que este lhe faça um trabalho. Como essa prática é proibida, é flagrado, à meia-noite, pelo major Vidigal, que detendo os poderes de guarda e juiz, cerca com seus granadeiros a casa, surpreendendo o Pataca que, acompanhado por um coro, dançava, "em hábitos de Adão no Paraíso", no meio da sala.

Os feiticeiros são açoitados e Leonardo, após um sermão, acaba sendo preso e recolhido à Casa da Guarda. O meirinho consegue sair da prisão, graças ao apelo da comadre junto a um tenente-coronel da guarda do rei e à dívida que tinha com Maria Hortaliça. Ainda em Portugal, há muitos anos atrás, este militar convencera Maria a não se casar com seu filho que a seduzira, e esta vem para o Brasil. Em dívida com a moça e disposto a fazer o que pudesse por ela e seus, logo consegue a liberdade do Pataca.

A vida religiosa de Leonardo é curta por causa das traquinagens com o amigo sacristão. Um dia, durante uma das missas da Sé, vingam-se da vizinha bisbilhoteira, dando-lhe um banho de fumaça e cera derretida nas costas. Nervosa, ela se queixa ao padre Mestre-de-Cerimônias que, diante dela, chama severamente a atenção dos meninos. Por isso resolvem se vingar do padre.

Apesar de aparentemente santo, o Mestre-de-Cerimônias também cometia seus pecadilhos. Salvando todas as aparências da decência, mantinha relações amorosas com uma cigana que, por sua vez, era a ex-amante do Pataca. Incumbido de avisá-lo, na casa da cigana, da hora do sermão, Leonardo informa-lhe o horário errado. Em vez de nove, diz-lhe dez. Quando chega, com uma hora de atraso, para fazer o sermão, a confusão é tanta que a vida religiosa de Leonardo sucumbe, sendo expulso da Sé. O tempo passa, e, para desgosto do padrinho, que o queria clérigo, o rapaz transforma-se em "um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo".

Quando o caso da cigana com o padre vem a seus ouvidos, e não vendo mais chances com ela, Leonardo-Pataca resolve se vingar. Certo de que o sacerdote estaria na festa de aniversário da cigana, contrata o capanga Chico-Juca para ali promover uma arruaça, avisando também o Vidigal. De fato, no dia da festa, o padre lá participava, trancado no quarto, para onde a cigana, algumas vezes, entrava sorrateiramente com uma amiga. Durante o tumulto geral, iniciado por Chico-Juca, entra Vidigal e seus granadeiros, colocando ordem no recinto. O padre, só de cuecas, é pego em flagrante, servindo de chacota a todos e enviado à Casa da Guarda, na Sé. A cigana, por sua vez, retoma o caso com Pataca que consegue ficar com ela por mais algum tempo.

De vez em quando, o padrinho vai à casa de D. Maria em companhia do afilhado. Devota e amiga dos pobres, essa rica senhora tinha, como muitas daquele tempo, a mania das demandas. A recente era um processo em torno da tutela de Luisinha, uma sobrinha que viera morar com ela. Já bem crescido, e notando que seu coração palpitava mais forte e apressado em frente da sobrinha de D. Maria, Leonardo se vê, um dia, completamente apaixonado pela tímida Luisinha.

Numa das visitas à casa de D. Maria, padrinho e afilhado encontram José Manuel, um rapaz de trinta e cinco anos, com cara de velhaco. Toda amabilidade dispensada à velha, revelava claramente suas intenções na sobrinha. Aflito, Leonardo passa a vê-lo como a um inimigo.

O padrinho, vendo na sobrinha uma vida excelente para o rapaz, busca apoio na comadre que logo se prontifica a ajudá-los, delineando um plano para tirar José Manuel do caminho. A campanha de difamação é tamanha que a rica senhora passa a ver o gajo como mentiroso e maledicente.Um escândalo ocorrera no Oratório de Pedra naqueles dias. Uma jovem rica tinha fugido com um desconhecido, levando consigo o dinheiro dos pais. Apoiando-se nisso, a comadre conta à D. Maria que, estando no Oratório naquele dia, presenciara tudo e que, com certeza, o desconhecido tinha sido José Manuel.

Coincidentemente, por alguns dias José Manuel se ausenta da casa da senhora, fortalecendo nela a crença de que ele era o raptor. Quando retorna ao convívio da amiga, é literalmente enxotado porta afora. Para desfazer a intriga, José Manuel se vale dos serviços do Mestre-de-Rezas que, apesar de cego, tudo ouve. Com acesso livre ao interior da casa e em contato com os empregados, logo descobre a verdade. Desmascarada, a comadre fica desacreditada junto à amiga, e José Manuel volta às pazes com a rica senhora.

Enquanto Leonardo disputa Luisinha, Pataca abandona a cigana definitivamente. Sentindo-se mais sossegado, dá um novo rumo à vida, casando-se com a filha da comadre, Chiquinha, que lhe dá uma filha. Nessa época, o compadre cai doente e morre pouco depois. Homem previdente, fez do afilhado seu único herdeiro, deixando-lhe uma boa soma de dinheiro. Sabendo do ocorrido pela comadre, o meirinho apresenta-se para tomar conta da herança e do filho, recebendo-o de volta. A comadre resolve se juntar ao grupo. No entanto, a harmonia na casa dura pouco; a implicância entre Chiquinha e o enteado é imediata. O desentendimento entre os dois é tanto que Leonardo, sem jamais esquecer o primeiro ponta-pé paterno, se vê novamente expulso, às carreiras, da casa do pai.

Vagando sem rumo para as bandas dos Cajueiros, Leonardo se detém, ao ver uma família composta por um grupo de rapazes e moças que festeja e canta. Quando estão saindo, reconhece, entre eles, o sacristão da Sé, agora um jovem de vinte anos, amasiado com uma morena. No grupo, desperta interesse Vidinha, mulatinha de dezoito a vinte anos, "lábios grossos e úmidos, cintura fina e peito alteado", e excelente cantora de modinhas. Herdando do pai forte inclinação aos amores, Leonardo apaga Luisinha da mente, não vendo senão os olhos negros de Vidinha; e o eco da modinha que cantara. Completamente apaixonado pela mulata, junta-se ao grupo do amigo Tomás da Sé. Com exceção de dois primos, candidatos também ao amor de Vidinha, os demais membros da família o aceitam como morador de bom agrado.

Nesse meio tempo, inocente perante D. Maria, José Manuel encontra caminho livre para pedir Luisinha em casamento. Ela aceita, indiferentemente, o enlace proposto pela tia, visto Leonardo tê-la abandonado.

Importando-se apenas com os olhos, sorrisos e requebros de Vidinha, Leonardo não liga para mais nada. Metido em casa o tempo todo, é um vadio completo. Em uma festa semelhante à que deu origem ao seu relacionamento com a família, encontra o major Vidigal, avisado pelo primos. Assim que vê Leonardo, prende-o por vadiagem, mas este consegue fugir a caminho da Casa da Guarda. De volta à casa de Vidinha, sabe que não se livrará do major, se não arranjar ocupação. A comadre ressurge, passando-lhe o costumeiro sermão para que se coloque em atividade. Alguns dias depois, participa-lhe que lhe achou um lugar na despensa real.

Leonardo se envolve com a amante do grandalhão Toma-Largura, um colega de trabalho, e sua carreira na ucharia toma outro rumo. Depois de espancado pelo tal colega, é despedido. Em casa tem de suportar um violento ataque de ciúmes de Vidinha que sai de casa para tomar satisfações com a moça. Leonardo, que a acompanhava à distância, acaba sendo novamente preso e transformado em granadeiro, pelo major Vidigal, e como tal, numa patuscada, prende o bêbado valentão Toma-Largura, que agora andava de namorico com Vidinha. Interpretando a longa ausência do amante como descaso, ela passa a considerar as constantes aparições do Toma-Largura, em sua casa, como sinal de interesse. Por isso rende-se a ele, vingando-se de Leonardo e da mulher com quem este a traíra.

Mesmo na condição de soldado, Leonardo, não deixava de pregar peças ao major Vidigal. Em uma delas, é incumbido de vigiar Teotônio, um banqueiro de jogos e grande imitador, que, nas festas, ridiculariza o major com suas imitações. Este queria pegá-lo e o batizado da filha do Pataca lhe parece o lugar ideal. O granadeiro não só o vigia como também o alerta da cilada preparada pelo Vidigal. O malandro consegue escapar e logo o major descobre a cumplicidade de Leonardo que volta à prisão, com a promessa de receber algumas chibatadas.

Ao saber de tal punição, a comadre, mais uma vez, entra em ação para libertar o insubordinado. Diante das negativas do major, ela procura D. Maria e ambas se dirigem à casa de Maria-Regalada, ex-amor do major. O empenho e o compradesco, já naquela época, são vitais a todo movimento social. Então, por intercessão desta, Leonardo não só é libertado como também promovido a sargento de milícias e com esse uniforme reencontra Luisinha nos funerais do esposo, José Manuel. Péssimo marido, sem amar a esposa, preocupa-se apenas com o dinheiro dela. O ataque fulminante que o mata liberta Luisinha e D. Maria dos aborrecimentos de uma ação judicial contra ele.

Mais desenvolta, Luisinha, sem o acanhamento de outrora, fica bonita e o reencontro revela que os dois ainda se amam. Nesse meio tempo, Leonardo-Pataca entrega ao filho a herança intacta, deixada pelo padrinho e prepara-se o casamento. Ao término do luto, com a presença de toda a família na Sé, Leonardo, em uniforme de sargento de milícias, casa-se com Luisinha.

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