MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR

À guisa de prefácio

João Miramar abandona momentaneamente o periodismo para fazer a sua entrada de homem moderno na espinhosa carreira das letras. E apresenta-se como o produto improvisado e portanto imprevisto e quiçá chocante para muitos, de uma época insofismável de transição. Como os tanks, os aviões de bombardeio sobre as cidades encolhidas de pavor, os gases asfixiantes e as terríveis minas, o seu estilo e a sua personalidade nasceram das clarinadas caóticas da guerra.

Porque eu continuarei a chamar guerra a toda esta época embaralhada de inéditos valores e clangorosas ofensivas que nos legou o outro lado do Atlântico com as primeiras bombardas heróicas da tremenda conflagração européia.

O glorioso tratado de Versalhes que pôs termo à loucura nietzschiana dos guerreiros teutões, não foi senão um minuto de trégua numa hora de sangue. Depois dele, assistimos ao derramamento orgânico de todas as convulsões sociais. Poincaré, Artur Bernardes, Lênine, Mussolini e Kemal Paxá ensaiam diretivas inéditas no código portentoso dos povos, perante a falência idealista de Wilson e o último estertor rubro do sindicalismo. Quem poderia prever a Ruhr? Quem poderia prever o "pronunciamento" espanhol? E a queda de Lloyd George? E o telefone sem fio?

Torna-se lógico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução emocional dos surtos humanos. Se no meu foro interior, um velho sentimentalismo racial vibra ainda nas doces cordas alexandrinas de Bilac e Vicente de Carvalho, não posso deixar de reconhecer o direito sagrado das inovações, mesmo quando elas ameaçam espedaçar nas suas mãos hercúleas o ouro argamassado pela idade parnasiana. VAE VICTIS!

Esperemos com calma os frutos dessa nova revolução que nos apresenta pela primeira vez o estilo telegráfico e a metáfora lancinante. O Brasil, desde a idade trevosa das capitanias, vive em estado de sítio. somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores. Época nenhuma da história foi mais propícia à nossa entrada no concerto das nações, pois que estamos na época do desconcerto. O Brasil, país situado na América, continente donde partiram as sugestões mecânicas e coletivistas da modernidade literária e artística, é um país privilegiado e moderno. Nossa natureza como nossa bandeira, feita de glauco verde e de amarelo jalde, é propícia às violências maravilhosas da cor. Justo é pois que nossa arte também o queira ser.

Quanto à glótica de João Miramar, à parte alguns lamentáveis abusos, eu a aprovo sem, contudo, adotá-la nem aconselhá-la. Será esse o Brasileiro do Século XXI? foi como ele a justificou, ante minhas reticências críticas. O fato é que o trabalho de plasma de uma língua modernista nascida da mistura do português com as contribuições das outras línguas imigradas entre nós e contudo tendendo paradoxalmente para uma construção de simplicidade latina, não deixa de ser interessante e original. A uma coisa apenas oponho legítimos embargos – é à violação das regras comuns da pontuação. Isso resulta em lamentáveis confusões, apesar de, sem dúvida, fazer sentir "a grande forma da frase", como diz Miramar pro domo sua.

"Memórias Sentimentais"– por que negá-lo? – é o quadro vivo de nossa máquina social que um novel romancista tenta escalpelar com a arrojada segurança dum profissional do subconsciente das camadas humanas.

Há, além disso, nesse livro novo, um sério trabalho em torno da "volta ao material" – tendência muito de nossa época como se pode ver no Salão d'Outono, em Paris.

Pena é que os espíritos curtos e provincianos, se vejam embaraçados no decifrar do estilo em que está escrito tão atilado quão mordaz ensaio satírico.

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MACHADO PENUMBRA.

89. LITERATURA

Para Aradópolis, junto à fazenda Nova-Lombardia de recordações nupciais, fordei em primeira com o dr. Pilatos e meu querido Fíleas em excursão histórica e marcada conferência de Machado Penumbra convite do Grêmio Bandeirantes comemorador da malograda morte do conselheiro Zé Alves.

Auditório de fascistas sicilianos com professorado cow-boy no cine de zinco e palmas.

Ao longo da ribalta exígua o orador pôs frases alvíssimas nos bigodes pretos.

E de lambuja grandiloquou o conferente destinos territoriais de São Paulo na expectativa do trem com colegiada despedidora e vivante.

– a plenitude cafeeira e pastoril de nosso Estado se distende nos assaltos ao hinterland que foge num último galopar de índios e de feras! A cada investida vitoriosa, os novos bandeirantes são a reencarnação estupenda da luta, a magnífica, a eterna ressurreição simbólica da Força!

De chapéu no braço e gestos, Minão da Silva, meu agregado lombardo e jovem orgulho mulatal do grêmio, retrucou tomando a palavra pela ordem.

– Não preocupei as bancadas das escolas, meus senhores e ilustríssimas senhoras e crianças! Mas o conselheiro Zé Alves que o ilustre colega comemoramos, não morreu! Apenas desapareceu de nossa competência. O Grêmio Bandeirantes com 500 membros me mandou saudá-lo. Ele tem doutores que não quiseram vim. Mas a norma do regulamento dos estatutos me mandou saudar. Desculpe os erros!

E o trem taratinchou saudades.

153. NEGROLOGIA

Quando Machado Penumbra tomara-me a seu valente lado no jornal mundano e moderno que o chamara para repentino diretor como orientador e grande prosador.

E na sala aberta da redação o dr. Pilatos noturno de ohs e ahs aportou a notícia de fraque do adoecimento final e morte de minha sogra. E porque tia fosse tia exigia com abraços minha inoportuna presença em Higienópolis de janelas cerradas e acessos silêncios.

Não fui à casa que revi funerando inteira mutismos de passos e tlictlics de coroas e onde mudo, pomposo e lívido, o dr. Pepe Esborracha atenderia flor de laranjeiras crises de cá pra lá.

154. TESTAMENTEIROS

Por cuidado cabogramado do grande divorciador, o matrimonial contrato de Nice fora de precavidos efeitos, impondo a Chelinini não mais que três contos mensais de aluguel marideiro com cem de jóia e jóias. E o dono esperto da esperta Nair cerrara testamento tapado a máquina pela mão manhosa do médico de Célia e Pindobaville dr. Pepe Esborracha. Num choroso conluio, ambos se tinham descoberto como Brasis e concordado junto à cama desfalecida da enferma de aquecedor elétrico nos pés de cera. E assinaram a rogo que o longe Pantico ingrato empregado em Antuérpia e a Cotita de óculos contrariantes, bestenamorada dum mineiro de Minas, podiam dispensar vantagens que a devotação das duas outras merecia haver na sobrenadante fortuna fazendeiral em alta.

155. ORDEM E PROGRESSO

Ano Novo jantou juntados redatores e convivas pela administração jornalal de largas vistas e construiu a meu lado um paralelepípedo de carne com óculos sem pé que era o dr. Mandarim Pedroso. Machado Penumbra diretivo nos enfrentava casaca de papo branco e flor.

– É um grego de tendências emotivais! apontou-o com o guardanapo o toutiço vizinhante à chegada do trem da sobremesa. Vai longe! Vou fazê-lo Vice-Presidente do Recreio Pingue-Pongue.

Explicou-me o que era às claras essa chiquíssima sociedade de moças que a sua personalidade centrava como um coreto.

– Uma forja de temperamentos e um ninho de pombas gárrulas. O Sr. precisa entrar para lá, principalmente depois que o seu nome de poeta e jornalista começa a raiar nos galarins da fama. Quer saber, digo-lhe confidencialmente, o Presidente da República saiu de nossas fileiras, o Prefeito de São Paulo também, o Vice-Prefeito idem idem. Já fornecemos à alta administração doze estrelas de primeira grandeza. Santos Dumont é dos nossos.

E súbito, reservado como as senhoras que a gente encontra na sala secreta do museu de Nápoles:

O Sr. possui filhas?

– Sim. Tenho uma de seis anos.

– Ponha-a lá, ponha-a lá, se quiser salvá-la dos perigos contemporâneos. Ah! Lá não se dança o paso doble, meu caro senhor! O paso doble! Devia chamar-se a cópula de salão! Olhe, nós vivemos numa civilização de dancings...

Facas bateram copos semafóricos. Face a nós, Machado Penumbra elevara-se, neto de Lord Byron na Itália.

– É um discurso para amigos, meus senhores! E como esta florida mesa reúne somente rapazes, eu beberei a cupido! A cada presente a esta reunião de saúde e fraternidade, eu junto uma ausente cara, numa argonave de esperanças eternas.

Porque nós, meus colegas, meus amigos, neste vale de emoções, de apogeus e de quedas de Ícaro, vivemos apenas o romance da eterna pesquisa, da eterna procura, da eterna recherche, da eterna mágoa da miragem! mas não fiquemos apenas na visão desse desejo do impossível que a todos nos inquieta e comove. Prossigamos na realização do Inachado, do Irrealizável, do Incrível, alcancemos a promessa lantejoulante do Nada! À mulher, ergo a minha taça de vencido!

ANDRADE, Oswald. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. p. 55-57; 114-115; 158-161.

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