NOITE NA TAVERNA

Uma noite do século

Silencio, moços! Acabei com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia?

— Cala-te Johann! Enquanto as mulheres dormem e Arnold-o-louro cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tiech, que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças?

— És um louco, Bertran! Não é a lua que lá vai macilenta: é o relâmpago que passa e ri de escárnio às agonias do povo que morre... aos soluços que seguem as mortualhas da cólera!

— Oh cólera! E que importa? Não há pôr ora vida bastante nas veias do homem? Não borbulha a febre ainda às ondas do vinho? Não reduz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna do crânio?

— Vinho! Vinho! Não vês que as taças estão vazias e bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?

— É o fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez!

— Oh! Vazio! Meu copo está vazio! Olá, taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?

— O vinho acabou-se nos copos, Bertran, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após dos vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A taverneira aí nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo é a imagem doidealismo, é o transunto de tudo quanto há mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! e pois, ao fumo das Antilhas, à imortalidade da alma!

— Bravo! Bravo!

Um urra! tríplice respondeu ao moço meio ébrio.

Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastava-lhe com as faces de moço as rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim. Falou:

— Calai-vos, malditos ! A imortalidade da Alma!? Pobres doidos! E por que a alma é bela, por que não concebeis que esse ideal possa tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos! Nunca velada levastes por ventura uma noite à cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! E porque também não sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! Não mil vezes! a alma não é, como a lua, sempre moça, nua e bela em sua virgindade eterna! A vida não é mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo de verme vai alvejar-se no cálice da flor ou na fronte da criança mais loura e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência de Platão foi talvez para o coração de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem ! talvez eu a creia um pouco, pelo platonismo, não!

—Solfieri! És um insensato! O materialismo é árido como o deserto, é escuro como o túmulo! A nós frontes queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nós sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os sonhos do espiritualismo.

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AZEVEDO, Álvares de. Noite na Taverna. São Paulo: Editora Três, 1973, p.27-29.

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