O GUARANI

Ali, por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.

Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pós suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.

Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.

O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia um só destes movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.

Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro...

.........Era uma luta de morte a que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranqüilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava satisfeito.

Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.

O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.

Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas de detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que viram brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.

Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.

Como o princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa: os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais, e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.

Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote: fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.

Essa luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.

Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas.

Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras, ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.

Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.

Nesse momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezira da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado.

O índio saltou sobre o arco e abateu-a daí a alguns passos no meio da carreira: depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flecha e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante.

Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça, e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado.

O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível.

Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo, quebrou na mata dois galhos secos de biribá, e roçando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.

Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles d'água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.

Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada...

.....

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Ática, 1981, p. 21-24.

Previous Next