O MULATO

Capítulo VI

Ana Rosa, com efeito, de algum tempo a essa parte, fazia visitas ao quarto de Raimundo, durante a ausência do morador.

Entrava disfarçadamente, fechava as rótulas da janela, e, como sabia que o morador não aparecia àquela hora começava a bulir nos livros, a remexer nas gavetas abertas, a experimentar as fechaduras, a ler os cartões de visita e todos os pedacinhos de papel escrito, que lhe caíam nas mãos. Sempre que encontrava um lenço já servido, no chão ou atirado sobre a cômoda apoderava-se dele e cheirava-o sofregamente, como fazia também com os chapéus de cabeça e com a travesseirinha da cama.

Estas bisbilhotices deixavam-na caída numa enervação voluptuosa e doentia, que lhe punha no corpo arrepios de febre. Uma vez encontrou uma banda de luva cor cinza, esquecida atrás de uma das malas, calçou-a logo, com avidez e felicidade, e pôs-se a fixá-la muito, a interrogá-la com os olhos, abrir e fechar a mão, distraída, acompanhando as rugas da pelica. E esta luva arrancava-lhe conjecturas sobre o passado de Raimundo; fazia-lhe imaginar os bailes ruidosos de Paris, as festas, os passeios, as estações dos caminhos de ferro, as manhãs frescas em viagem de mar, as ceias nos hotéis, as corridas a cavalo, e toda uma vida de movimento, de gargalhadas, de almoços com mulheres; uma existência que se desenrolava defronte da sua maginação, como um panorama feito com os desenhos do álbum de Raimundo, e em cujo primeiro plano atravessava este, rindo, fumando, braço dado à dançarina da fotografia, que lhe dizia, cheia de um amor teatral: "Raymond! mon bien-aimé!"

Foi num desses sonhos que Ana Rosa, irrefletidamente, arranhou o rosto do retrato, com a mesma raiva como que no colégio fazia outro tanto aos judeus mal desenhados do seu compêndio de doutrina cristã.

Aquelas visitas eram agora toda a sua preocupação; os seus melhores instantes eram os que passava ali, entregue de corpo e alma àquele segredo; o resto do tempo servia apenas para esperar a hora do prazer querido; e quando por qualquer motivo, não podia realizá-lo, ficava insuportavelmente frenética e nervosa. Até já nem queria saber das amigas; tomara-se de birra pela Eufrasinha e não pagava uma só das visitas que lhe faziam. E nem por sombras lhe falassem de festas e divertimentos – seu único divertimento, a sua única festa era estar lá, naquele quarto proibido, sozinha, à vontade, conversando intimamente com os objetos de Raimundo, lendo os seus papéis, mexendo em tudo, a palpitar num gosto novo e desconhecido, secreto, cheio de sobressaltos, quase criminoso; saboreando aos poucos, em goles compassados, como um vinho bom, gozos, extremamente fortes, violentos; sentindo-se embriagar, consumir, absorver por aquela loucura de perseguir um nada, uma esperança que lhe fugia, que a atormentava, porém melhor e mais deliciosa, para ela, que os melhores e mais brilhantes prazeres da sociedade.

No dia em que Raimundo subira, pé ante pé, ao seu quarto Ana Rosa tinha entrado havia pouco e, como de costume, fechara-se por dentro. O ambiente fizera-se de um tom morno e duvidoso, em que havia mescla de claridade e sombra. Ela, depois de varrer o olhar em torno de si, assentara-se na cama e tomara, distraidamente, de uma cadeira ao lado, no lugar do velador, um tratado de fisiologia, que o rapaz estivera a ler na véspera, antes de dormir, e que havia deixado junto ao castiçal, marcado pela caixa de fósforos.

Ao abrir o livro, Ana rosa soltou logo uma envergonhada exclamação: dera com um desenho, em que o autor da obra, com a fria sem-cerimônia da ciência expunha aos seus leitores uma mulher no momento de dar à luz o filho. A fidelidade, indecorosa e séria, da estampa, produziu no ânimo da moça uma impressão estranha de respeito e de vexame. Sem compreender cabalmente o que tinha diante dos olhos, fixava a página, voltando-a de uma para outro lado à procura de entender melhor. Virou algumas folhas e, com o pouco que sabia do francês, tentou apanhar o sentido do que vinha escrito sobre os vários fenômenos da gestação e do parto; ao chegar porém, a uma das gravuras, fechou o livro com ímpeto e olhou em torno, como para certificar-se de que estava completamente só. Tinha visto de surpresa um espetáculo, que os seus sentidos ainda mal formulavam por instinto – o ato da fecundação. Fizera-se cor de romã e repelira o indiscreto volume com um ligeiro e espontâneo movimento do seu pudor, mas, pouco depois, pensando bem no caso, convencendo-se de que tudo aquilo não era feito por malícia, mas ao contrário, para estudo, muniu-se de coragem e afrontou a página.

Aquele desenho abriu-se, defronte dela, como um postigo, para um mundo vasto e nebuloso, um mundo desconhecido, povoado de dores, mas ao mesmo tempo irresistível; estranho paraíso de lágrimas, que simultaneamente a intimidava e atraía. Observou-o com profunda atenção, enquanto dentro dela se travava a batalha dos desejos. Todo o ser se lhe revolucionou; o sangue gritava-lhe, reclamando o pão do amor; seu organismo inteiro protestava irritado contra a ociosidade. E ela então sentiu bem nítida a responsabilidade dos seus deveres de mulher perante a natureza, compreendeu o seu destino de ternura e de sacrifícios, percebeu que viera ao mundo para ser mãe; concluiu que a própria vida lhe impunha, como lei indefectível, a missão sagrada de procriar muitos filhos, sãos, bonitos, alimentados com seu leite, que seria bom e abundante, e que faria deles um punhado de homens inteligentes e fortes.

E tinha já defronte dos seus olhos os seus queridos filhinhos, nus, muito tenros e roliços, com a moleira descascando, os pezinhos vermelhos, narizinhos quase imperceptíveis, pequeninas bocas desdentadas, a lhe chuparem os peitos, com a engraçada sofreguidão irracional das criancinhas. E, a pensar neles, enlanguescia toda, numa postura indolente e comovida – os braços estendidos sobre as coxas, a cabeça mole, pendida para o seio, o olhar quebrado e fito, com preguiça de mover-se, o livro descansando nos joelhos, entre os dedos insensibilizados. E cismava: "Sim, precisava casar, fazer família, ter um marido, um homem só dela, que a amasse vigorosamente!" E via-se dona de casa, com o molho das chaves na cintura – a ralhar, a zelar pelos interesses do casal, cheia de obrigações, a evitar o que contrariasse o esposo, a dar as suas ordens para que ele encontrasse o jantar pronto. E queria fazer-lhe todas as vontades, todos os caprichos – tornar-se passiva, servi-lo como uma escrava amorosa, dócil, fraca, que confessa sua fraqueza, seus medos, sua covardia, satisfeito de achar-se inferior ao seu homem, feliz por não poder dispensá-lo. E cismava, muito, muito, no marido, e esse marido aparecia-lhe na imaginação sob a esbelta figura de Raimundo.

Nisto, abriu-se por detrás dela o cortinado da cama, com um leve rumor de rendas engomadas.

Ana Rosa voltou-se em sobressalto e deu, cara-a-cara, com Raimundo, que a fitava repreensivo, soltou um grito e tentou fugir. O livro caiu ao chão, escancarando uma página, onde se via desenhado o interior de um ventre, cheio com o seu grande novelo de tripas amarelas e cor-de-rosa.

O rapaz não lhe deu tempo para sair, colocando-se entre a cama e a parede.

– Tenha a bondade de esperar... disse, muito sério.

– Deixe-me por amor de Deus! suplicou ela, torcendo a cabeça, para evitar os olhos de Raimundo.

– Não senhora, há de ouvir-me primeiro... respondeu este com delicada autoridade. E acrescentou, depois de uma pausa, pondo nas palavras certo cunho de superioridade paternal: Custa-me, mas é necessário repreendê-la... tanto mais, por me achar na casa de seu pai, que é também sua!... A senhora, porém, cometeu uma falta, e eu cometeria outra maior se me calasse.

– Deixe-me!

– A senhora sairá deste quarto prometendo que não tornará a fazer o que tem feito!... Se descobrissem as suas visitas clandestinas, que não julgariam de mim?... de mim, e da sua pessoa, o que é muito mais grave!... Que não diriam?... E, vamos lá – com direito!... Pois a reputação de uma senhora é coisa que se exponha deste modo?... Isto tem lugar?... Mas, quando assim fosse, quando, por uma aberração imperdoável, minha prima assim entendesse, poderia barateá-la, sem enxovalhar sua família? Fique sabendo minha senhora, que a obrigação que cada qual tem de zelar pelo seu nome, não se baseia só no amor-próprio, mas no respeito que devemos aos solidários do nosso crédito! Uma senhora nada tem que fazer no quarto de um rapaz!... é muito feio! Minha prima comete com isso uma ingratidão a quem deve tudo – a seu pai!

O pranto nervoso da menina, sustido até ali com dificuldade, rebentou-lhe da garganta e dos olhos, com um regato que quebrasse as represas; as lágrimas corriam-lhe quentes pela face e pingavam-lhe grossas bagas nas carnes brancas e palpitantes do seio.

Raimundo comoveu-se, mas procurou esconder a sua emoção, E, desviando o corpo, para lhe dar passagem, acrescentou com a voz pouco alterada.

– Peço-lhe que se retire e não volte em circunstâncias idênticas...

Queria acusá-la ainda, repreendê-la mais, porém as sobrancelhas desfranziam-se-lhe defronte daquele vestidinho honesto de chita, daquelas singelas tranças castanhas, daquelas lágrimas inocentes.

Ana Rosa ouviu-o de cabeça baixa, sem uma palavra, com o rosto escondido no lenço. Quando Raimundo acabou de falar, ela dava grandes soluços, muito suspirados, como de uma criança inconsolável.

– Então que tolice é esta?... Agora está soluçando deste modo!... Vamos, não seja criança!...

Ana Rosa chorava mais.

– Olhe que, desse modo, podem ouvi-la da varanda!...

E Raimundo atrapalhava-se de emoção e de medo; já não acertava com o que queria dizer; faltavam-lhe os termos; sentia-se estúpido. Começou a temer a situação.

– Vamos, minha amiga... tartamudeou inquieto, se a ofendi, desculpe, perdoe-me, era para seu interesse...

E chegou-se para ela, ameigou-a; estava arrependido de ter sido tão ríspido. "Fora grosseiro! No fim de contas, bem sabia que a pobre moça não era responsável por aquilo!..." Sentia remorsos. E tentou destruir o mau efeito das suas primeiras palavras:

– Então, vamos... eu sou seu amigo, diga-me por que chora...

Ana Rosa não respondia, soluçava sempre. Raimundo não pôde conter um movimento de impaciência, e coçou a cabeça.

– Ai, que vai mal a história!

Estava já sinceramente arrependido de ter vindo surpreendê-la. "Que lhe valesse paciência!" Todo o seu receio era que a ouvissem da varanda. "Descobriam tudo!... Com certeza que descobriam!"

E, sem saber o que fazer, atarantado, foi à porta, voltou, tornou a ir, aflito, sobre brasas.

– Então, minha prima tenciona ficar?... Não chore mais!... Que imprudência a sua!... Lembre-se que está no meu quarto... Tenha a bondade – retire-se. Não fique ressentida, vá que podemos comprometer-nos muito seriamente!...

Redobrou o pranto.

– A senhora não tem motivo para chorar!...

– Tenho, sim, respondeu ela por detrás do lenço.

– Ora essa! Então por que é?

– É porque o amo muito, muito, entende? declarou entre soluços, com os olhos fechados e gotejantes, e assoando-se devagarinho, sem afastar do nariz o lenço ensopado de lágrimas e entrouxado na mão. – Desde que o vi! Desde o primeiro instante! percebe? E no entanto meu primo nem...

E desatou a chorar mais forte ainda, desorientada, apaixonadamente.

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AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martins Fontes, 1975, p.121-126.

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