O QUINZE

7

O pequeno ia no meio da carga, amarrado por um pano aos cabeçotes da cangalha.

De vez em quando, levava a mãozinha aos olhos, e fazia rah! rah! ah! ah! numa enrouquecida tentativa de choro.

Cordulina chegava-se à burra para o consolar, ajeitava-lhe o chapéu de pano na cabeça, até que um dos menores gritava:

– Olha, mãe! Os pés da zabelinha! olha o coice!

Chico Bento fechava a marcha, com o cacete ao ombro, do qual pendia uma trouxa.

Mocinha, de vestido engomado, também levava sua trouxa debaixo do braço, e na mão, os chinelos vermelhos de ir à missa.

O sol ia esquentando. De cima da cangalha, o menino chorou com mais força, debatendo-se, até que Cordulina o retirou, com medo de uma queda.

Pô-lo no quarto; logo uma briga se armou entre os outros, num assalto aceso ao lugar na cangalha; na balbúrdia da disputa, eles se confundiam e só se podia distinguir, de momento a momento, um murro, um rasgão, e nuvens de poeira.

Chico Bento, intervindo, trepou o menor. E os outros, por trás do pai, vingavam-se, estirando a língua, com gestos insultuosos mas perdidos porque o cavaleiro não os via, mergulhado na alegria de sua vitória.

Súbito, sua vozinha estridulou num grito comovido:

– Olha a Rendeira!

E apontava para uma vaca pintada de preto e branco, que, magra e quieta à beira da estrada, parecia esperar a família fugitiva para uma derradeira despedida.

Cordulina recomeçou a chorar; o próprio Chico Bento passou rapidamente a manga pelo rosto.

A Rendeira fitou em todos os seus grandes olhos dolorosos, donde escorria uma lista clara sobre o focinho escuro, como um caminho de lágrimas.

Só Mocinha olhou a rês com indiferença, ajeitou na mão as chinelas, e continuou a andar no seu passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões quebradiços do chão.

*

Na primeira noite, arrancharam-se numa tapera que apareceu junto da estrada, como um pouso que uma alma caridosa houvesse armado ali para os retirantes.

O vaqueiro foi aos alforjes e veio com uma manta de carne de bode, seca, e um saco cheio de farinha, com quartos de rapadura dentro.

Já as mulheres tinham improvisado uma trempe e acendiam o fogo. E a carne foi assada sobre as brasas, chiando e estalando o sal. Pondo na boca o primeiro pedaço, Chico Bento cuspiu:

– Ih! sal puro! Mesmo que pia!

Mocinha explicou:

– Não tinha água mode lavar...

Sem se importarem com o sal, os meninos metiam as mãos na farinha, rasgavam lascas de carne, que engoliam, lambendo os dedos.

Cordulina pediu:

– Chico, vê se tu arranja uma agüinha pro café...

Apesar da fadiga do longo dia de marcha, Chico Bento levantou-se e saiu; a garganta seca e ardente, parecendo ter fogo dentro, também lhe pedia água.

Os meninos, passado o furor do apetite, exigiam com força o que beber; gemiam, pigarreavam, engoliam mais farinha, ou lambiam algum taco de rapadura, entretendo com o doce a garganta sedenta.

Pacientemente, a mãe os consolava:

– Esperem aí, seu pai já vem...

Em meia hora, realmente, ele chegou, com a cabaça cheia duma água salobra que arranjara a quase um quilômetro de distância.

O Josias, que era o que mais se lastimava e mais tossia, correu para o pai, tomou-lhe a vasilha da mão e colando às bordas a boca sôfrega, em sorvos lentos, deliciados, sugou a água tão esperada; mas os outros, avançando, arrebataram-lhe a cabaça.

Aflita, Cordulina interveio:

– Seus desesperados! Querem ficar sem café?

*

Os três dias de caminhada iam humanizando Mocinha.

O vestido, amarrotado, sujo, já não parecia toilette de missa. As chinelas baianas dormiam no fundo da trouxa, sem mais saracoteios nos dedos da dona. E até levava escanchado ao quadril o Duquinha, o caçula, que, assombrado com a burra, chorava e não queria ir na cangalha.

Chico Bento troçava:

– Hein, minha comadre! Botou o luxo de banda...

*

Debaixo de um juazeiro grande, todo um bando de retirantes se arranchara: uma velha, dois homens, uma mulher nova, algumas crianças.

O sol, no céu, marcava onze horas. Quando Chico Bento, com seu grupo, apontou na estrada, os homens esfolavam uma rês e as mulheres faziam ferver uma lata de querosene cheia de água, abanando o fogo com um chapéu de palha muito sujo e remendado.

Em toda a extensão da vista, nem uma outra árvore surgia. só aquele velho juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na desolação cor de cinza da paisagem.

Cordulina ofegava de cansaço. A Limpa-Trilho gania e parava, lambendo os pés queimados.

Os meninos choramingavam, pedindo de comer.

E Chico Bento pensava: – Por que, em menino, a inquietação, o calor, o cansaço, sempre aparecem com o nome de fome?

– Mãe, eu queria comer... me dá um taquinho de rapadura!

– Ai, pedra do diabo! Topada desgraçada! papai, vamos comer mais aquele povo, debaixo desse pé de pau?

O juazeiro era um só. O vaqueiro também se achou no direito de tomar seu quinhão de abrigo e de frescura.

E depois de arriar as trouxas e aliviar a burra, reparou nos vizinhos. A rês estava quase esfolada. A cabeça inchada não tinha chifres. só dois ocos podres, malcheirosos, donde escorria uma água purulenta.

Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos esfoladores:

– De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?

Um dos homens levantou-se, com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo:

– De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus.

Chico Bento cuspiu longe, enojado:

– E vosmecês têm coragem de comer isso? Me ripuna só de olhar...

O outro explicou calmamente:

– Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela na boca...

Chico Bento alargou os braços, num grande gesto de fraternidade:

– Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão!

Realmente a vaca já fedia, por causa da doença.

Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus vê-la, lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens. E para comemorar o achado executavam no ar grandes rondas festivas, negrejando as asas pretas em espirais descendentes.

*

E o bode sumiu-se todo...

Cordulina assustou-se:

– Chico, que é que se come amanhã?

A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou:

– Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados roerem osso podre...

(...)

9

Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas.

– Mãezinha, cadê a janta?

– Cala a boca, menino! Já vem!

– Vem lá o quê!...

Angustiado, Chico Bento apalpava os bolsos... nem um triste vintém azinhavrado...

Lembrou-se da rede nova, grande e de listas que comprara em Quixadá por conta do vale de Vicente.

Tinha sido para a viagem. Mas antes dormir no chão do que ver os meninos chorando, com a barriga roncando de fome.

Estavam já na estrada do Castro. E se arrancharam debaixo dum velho pau-branco seco, nu e retorcido, a bem dizer ao tempo, porque aqueles cepos apontados para o céu não tinham nada de abrigo.

O vaqueiro saiu com a rede, resoluto:

– Vou ali naquela bodega, ver se dou um jeito...

Voltou mais tarde, sem a rede, trazendo uma rapadura e um litro de farinha:

– Tá aqui. O homem disse que a rede estava velha, só deu isso, e ainda por cima se fazendo de compadecido...

Faminta, a meninada avançou; e até Mocinha, sempre mais ou menos calada e indiferente, estendeu a mão com avidez.

Contudo, que representava aquilo para tanta gente?

Horas depois, os meninos gemiam:

– Mãe, tou com fome de novo...

– Vai dormir, dianho! Parece que tá espritado! Soca um quarto de rapadura no bucho e ainda fala em fome! Vai dormir!

E Cordulina deu o exemplo, deitando-se com o Duquinha na tipóia muito velha e remendada.

A redinha estalou, gemendo.

Cordulina se ajeitou, macia, e ficou quieta, as pernas de fora, dando ao menino o peito rechupado.

Chico Bento estirou-se no chão. Logo, porém, uma pedra aguda lhe machucou as costelas.

Ele ergueu-se, limpou uma cama na terra, deitou-se de novo.

– Ah! minha rede! Ô chão duro dos diabos! E que fome!

levantou-se, bebeu um gole na cabaça. A água fria, batendo no estômago limpo, deu-lhe uma pancada dolorosa. E novamente estendido de ilharga, inutilmente procurou dormir.

A rede de Cordulina que tentava um balanço, para enganar o menino – pobrezinho! o peito estava seco como uma sola velha! – gemia, estalando mais, nos rasgões.

E o intestino vazio se enroscava como uma cobra faminta, e em roncos surdos resfolegava furioso: rum, rum, rum...

De manhã cedo, Mocinha foi ao Castro, ver se arranjava algum serviço, uma lavagem de roupa, qualquer coisa que lhe desse para ganhar uns vinténs.

Chico Bento também já não estava no rancho. Vagueava à toa, diante das bodegas, à frente das casas, enganando a fome e enganando a lembrança que lhe vinha, constante e impertinente, da meninada chorando, do Duquinha gemendo:

"Tô tum fome! dá tumê!'

Parou. Num quintalejo, um homem tirava o leite a uma vaquinha magra.

Chico Bento estendeu o olhar faminto para a lata onde o leite, subia, branco e fofo como um capucho...

E a mão servil, acostumada à sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido... mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante.

A vergonha da atitude nova o cobriu todo; o gesto esboçado se retraiu, passadas nervosas o afastaram.

Sentiu a cara ardendo e um engasgo angustioso na garganta.

Mas dentro da sua turbação lhe zunia ainda aos ouvidos:

"Mãe, dá tumê!..."

E o homenzinho ficou, espichando os peitos secos de sua vaca, sem ter a menor idéia daquela miséria que passara tão perto, e fugira, quase correndo...

*

Mocinha chegou animada, a bem dizer risonha:

– Tem lá uma mulher que carece de uma moça mode ajudar na cozinha e vender na Estação.

Cordulina interrompeu o remendo que cosia, interessada:

– Quem é?

Mocinha esticou o beiço, num gesto vago:

– Sei direito não... Parece que se chama Eugênia...

Cordulina dobrou o pano, enfiando nele a agulha, pensativa:

– E tu não tem pena de ficar aqui, mais esses estranhos?

A moça encolheu os ombros:

– Assim... Quem não tem pai nem mãe, como eu, pra todo o mundo é estranho...

*

Defronte da casa de sinhá Eugênia, Mocinha se despediu de seu povo.

Cordulina a abraçou chorando, de lábios fechados, para abafar os soluços que lhe sacudiam as costas.

Chico Bento deu-lhe a mão, com o gesto desafetuoso e mole de sertanejo, e lhe bateu levemente no ombro. A rapariga levantou o Duquinha:

– Adeus, meu bem! Tome a bênção de sua tia!

O pequeno a agarrou pelo pescoço, prevendo qualquer nova surpresa dolorosa.

Ela, chorando, beijava-lhe as falripas arruivadas do cabelo, a pequena testa encardida.

– Adeus, meu filhinho!

Bruscamente, Cordulina o arrebatou e o prendeu aos amarradilhos da cangalha; o menino tomou o choro, e ficou quase um minuto roxo e duro, o rosto num esgar de desespero.

Aflita, a mãe o sacudia, gritando:

– Duca! Duca!

Afinal o pequeno tornou; e Chico Bento tangeu a burra.

O grupo principiou a andar, comovido e desolado; e até se sumir na curva, Mocinha, de pé na calçada, viu o pequenino vulto no meio da carga, torcendo-se, estendendo por entre as mangas largas da camisa encarnada os bracinhos escuros, tisnados pelo sol, gritando lamentosamente:

Titia! Titia! Eu téo você!

Sinhá Eugênia comentou, entrando:

– Credo! que desespero!

Mocinha enxugou pela derradeira vez os olhos úmidos:

– Foi porque eu ajudei a criar ele...

*

Dias depois, indo e vindo, na cozinha enfumaçada, sinhá Eugênia, furiosa, lamentava sua xícara florada, e descompunha Mocinha:

– Essa sem-vergonha só quer é namorar! Vive de dente de fora pros homens e não liga pra nada! Por causa dessa peste roubaram o meu casal de pires!

Mocinha, sentada no pilão, escutava pacientemente. Que lhe importava uma descompostura a mais, da velha? Vivia agora tão feliz!

Passava quase todo o dia na Estação, alegre como uma feira, cheia de gente como uma missa...

A Estação enxameando de guarda-freios, de bagageiros, de passageiros alegres, que rodeavam formigando a sua mesa, na ansiedade de chegar bem depressa, de receber de suas mãos a xícara cheia de café, embora requentado e engulhento.

E dentro daquele enlevo, cuidava pouco no serviço. Parava, o bule no ar, ouvindo graças dos fregueses, apesar dos berros de sinhá Eugênia:

– Olha o café, criatura! Larga de ouvir tanta prosa, cuida nas mãos!

Ela então se virava espantada, aturdida, ainda com um meio riso lhe descobrindo a pontinha quebrada de um dente:

– Inhora?...

QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., s/d. p.51-55; 59-63.

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