SÃO BERNARDO

Graciliano Ramos

Paulo Honório pensa em escrever um livro, imaginando construí-lo pela divisão de tarefas. Busca o auxílio de alguns amigos, que aceitam contribuir de boa vontade. Padre Silvestre se incumbirá das citações latinas e da parte moral. João Nogueira ficará com a pontuação, a ortografia e a sintaxe. Arquimedes se ocupará da composição gráfica e Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro, se encarregará da composição literária. E, ele, Paulo, do plano, da introdução na história de rudimentos de agricultura e pecuária, fará as despesas e colocará o nome na capa.

Contudo, os integrantes não chegam a um acordo. João Nogueira pensa no romance em língua camoniana, com períodos formados de trás para diante. Padre Silvestre se torna severíssimo, exigindo devassas rigorosas e castigos, chegando até a virar a cara para Paulo. Lúcio Gomes, o único com quem Paulo achava que podia contar, entrega-lhe, ao final de quinze dias, dois capítulos datilografados, carregados de besteiras. Paulo se zanga, acha o material pernóstico, pois ninguém fala daquela maneira. Gondim, por seu lado, acrescenta que um artista não pode escrever como fala. Honório decide abandonar o plano.

Mas, um dia, sem menos esperar, inicia a composição de repente, usando seus próprios recursos. Sente-se satisfeito por não contar com mais ninguém. Assim, poderá escrever o que quiser e como vai usar pseudônimo, ninguém ficará sabendo que é o autor e não lhe chamarão de potoqueiro.

À medida que o trabalho avança, vai descobrindo suas dificuldades. Sua especialidade é a estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil. E, aos 50 anos, sente dificuldade em aprender noções não obtidas quando jovem. Nunca se importou como mais nada na vida a não ser a tomada de posse de São Bernardo, a construção de sua casa e da capela, por sugestão do Padre Silvestre, as plantações de algodão, mamona, a instalação da serraria e do descaroçador, o desenvolvimento de um rebanho bovino e a dedicação à avicultura.

No primeiro capítulo da obra, Paulo Honório dá seus dados pessoais, incluindo que em sua certidão não consta o nome dos pais. Foi criado pela velha Margarida, que ainda está viva e é por ele sustentada. Descreve os tempos difíceis sobre a enxada, a briga com João Fagundes que, assim como ele, abusara da mocinha Germana. O entrevero acaba no esfaqueamento de João e a prisão de Paulo por 3 anos. Aprende a ler a ler, na cadeia, com o finado Joaquim sapateiro.

Liberto, pensa em ganhar dinheiro e se entrega a toda sorte de negócio. Sofre sede e fome. Junta homens para dar uma surra no Dr Sampaio, que lhe comprou gado e não lhe quer pagar. Menciona que montou uma cilada para forçar o doutor a cumprir seu dever.Com isso, sua fortuna vai crescendo. Guarda-a, com muito cuidado dentro de um chocalho grande, fechado com folhas e preso à sua cela.Se o dinheiro e as folhas caíssem, o chocalho tocava.

Prossegue, narrando que volta para a mata, cansado da vida que leva. Vai acompanhado de seu fiel servidor, Casimiro Lopes, seguindo para estabelecer-se em Viçosa, Alagoas, adquirindo São Bernardo, local onde trabalhou, no eito, pelo salário de cinco tostões. Passa a relatar como conseguiu comprar a propriedade.

O negócio foi entabulado com Luís Padilha, filho do ex-proprietário. O rapaz era um bêbado e jogador inveterado. Paulo, astutamente, vai emprestando-lhe dinheiro para o jogo e retendo as letras. No momento oportuno, apresenta o que lhe é devido e Padilha, sem encontrar uma saída, vê-se forçado a negociar a propriedade. O rapaz chora, esperneia, endoidece, mas acaba assinando a escritura.

Paulo deduz a dívida, os juros, o preço da casa, que incluíra no negócio e entrega-lhe sete contos e quinhentos e cinqüenta mil-réis, acrescentando que não demonstrou nenhum remorso. Escreve que, tão logo se instala em São Bernardo, o vizinho, Sr. Mendonça, que já avançara e muito sua cerca para dentro da propriedade do narrador, aparece para lhe dizer que devia tê-lo consultado antes. Paulo diz que percebe que não vale a pena brigar com o velho. Decide ser gentil e cuidadoso, prometendo-lhe discutir sobre os limites, mais tarde, com mais calma.

Os dois primeiros anos são difíceis, exigindo trabalho de sol a sol ou debaixo de chuva sem descanso. O capanga, Casimiro Lopes, sempre a seu lado, trabalha duro, cumprindo tudo o que o patrão lhe exige, até acertos de contas com vizinhos. Paulo narra que continua seu projeto de tratar Mendonça com fingida cortesia. Vai a casa deste e lhe oferece um carneiro para ser comido no domingo das eleições. Menciona que pode conseguir votos entre os seus e, aos poucos Mendonça se sente à vontade.

Prosseguindo, vai se insinuando e falando das eleições. Chega a crer que o velho não mais desconfiava dele. Evita, a todo custo, qualquer discórdia. Confessa que a cerca avançada por Mendonça o amargurava e entristecia, mas aparentemente tinha conseguido manter a paz até ali.

Desce para jantar e conversa com Casimiro Lopes, expõe-lhe seus planos e o homem prontamente colabora com eles. Paulo escreve algumas cartas aos bancos da capital, solicitando empréstimos. Ao governador do Estado comunica a possibilidade da instalação de numerosas indústrias e, por isso, pede a dispensa de imposto sobre o maquinário a ser importado. Claro que não tem como pagá-lo, mas, mesmo assim, envia as cartas.

Mata o carneiro para os eleitores e no domingo à tarde, ao voltar da eleição, Mendonça recebe um tiro nas costas e morre ali mesmo. Na hora do crime, Paulo está na cidade, conversando com o vigário sobre a igreja que pretende levantar em São Bernardo, se os negócios correrem bem. Continua narrando todas as agruras e dificuldades para progredir. Diz que acha direito tudo o que fez para conseguir se tornar senhor de São Bernardo.

Após a morte do Mendonça, avança a cerca para o ponto em que estava no tempo do pai de Padilha, o velho Salustiano. Depois invade a terra do Fidélis, paralítico de um braço, a dos Gamas, que se divertiam estudando Direito no Recife. Respeita, contudo, o engenho do juiz, o dr Magalhães. Faz transações arriscadas, endivida-se para alcançar seus objetivos. Começa até uma estrada de rodagem para levar seus produtos ao mercado. Azevedo Gondim escreve dois artigos, em que o chama de patriota.

Porém, como invadiu quatro ou cinco propriedades acaba levando um tiro de emboscada, ferimento leve. Vive sobressaltado à noite, pensando ouvir passos dos inimigos em sua propriedade, sempre, guardada pelo fiel Casimiro.

O governador vem visitá-lo, acha tudo bonito, mas deseja saber onde fica a escola. Paulo diz que não há projeto para ela. No almoço, regado a champagne, dr. Magalhães faz um discurso e volta a mencioná-la. Ao levar o governador para mais uma volta pela fazenda, repentinamente, pensa que a escola pode resultar em alguma benevolência para certos favores que deseja pedir. Avisa que, na próxima visita, seus trabalhadores estarão aprendendo a cartilha. E, assim, de sutileza em sutileza, Paulo Honório vai completando seu relato.

Menciona que, tendo ido acertar as contas com o Brito, dá-lhe umas boas chibatadas até que o jornalista consegue escapar. O rapaz trabalha na Gazeta e revoltado, por Honório ter se negado a continuar lhe ajudando financeiramente, chega a difamá-lo no jornal, chamando-o de assassino, provocando o acerto de contas. Paulo Honório encontra, no vagão de volta a casa, com D.Glória e pergunta-lhe sobre a mocinha loira que a acompanhava, quando esteve na casa do dr Magalhães. A senhora lhe diz tratar-se de sua sobrinha, Madalena, que é professora.

Passa a freqüentar a casa da tia e sobrinha e, surpreendentemente, um dia a pede em casamento. Ela diz ser muito pobre e que o pedido é mais vantajoso para ela. Ele faz referência à instrução da moça e afirma que, se chegarem a um acordo, quem fará melhor negócio é ele. Uma semana depois, comunica a D.Glória seu casamento, dentro de uma semana, com a sobrinha. Casam em São Bernardo com a benção do Padre Silvestre.

Paulo Honório vai descobrindo, pouco a pouco, a capacidade de Madalena, que detesta os trabalhos caseiros, mas ajuda com perfeição o velho guarda-livros, o senhor Ribeiro. Honório ressalta que, sendo aquilo um relato de suas memórias, não sabe, ao certo quantos anos faz que Madalena partiu. Ouve vozes, pensa que são de Ribeiro e D.Glória. Mas, logo, recorda-se que a casa está deserta. Confunde o silêncio do presente com os ruídos do passado.

Continua o relato, falando sobre o excelente coração de Madalena, pronta a dar esmolas, a pedir pelos desamparados. Descreve a bondade e paciência da esposa. Narra que ficou morto de raiva, quando ela diz que o salário do Ribeiro era pouco, bem ali diante do Padilha. Contudo, surpreende-se, mais tarde, quando Madalena lhe traz uma xícara de café, pedindo-lhe desculpas por tamanha inconveniência.

Paulo Honório lhe dá, como ocupação, o cuidado com a correspondência e lhe oferece ordenado. Mas os ciúmes não o deixam sossegar e as desavenças vão surgindo entre o casal, tornando a convivência insuportável. Madalena lhe dá um filho e, ao completarem dois anos de casados, oferecem um jantar a João Nogueira, padre Silvestre e Azevedo Gondim, animados visitantes.

De repente, Honório desconfia que Madalena está de conluio com o Padilha, escolhido por Paulo para professor da Fazenda, e que, agora, anda com idéias comunistas. Onde já se viu, ele, Paulo Honório construindo e ela desmanchando, sem dúvida, sua mulher era comunista e materialista. Além disso, parecia estar se derretendo toda para o Nogueira e misturando tudo ao materialismo e ao comunismo.

Para castigar o Padilha, não lhe paga o salário por quatro meses, deixando-o bem distante da casa, comendo, bebendo e dormindo na escola. Humilhado, Padilha implora por outra colocação no fisco estadual. Honório manda-lhe esperar os soviéticos, pois, facilmente, conseguirá colocação na guarda vermelha.

Os ciúmes vão aumentando; passa a examinar o rosto do filho, conseguindo ver somente os traços da mãe no rosto da criança. Vai odiando todos, Padilha, D.Glória. Tem vontade de dar pancada até no céu da boca de Madalena. Seu desejo é surpreendê-la com outro. Revira malas, livros, abre-lhe as correspondências. Madalena tem ataques, chora com as desconfianças do marido.

Padre Silvestre, quando vem à visita, é também olhado com suspeita e as dúvidas vão se avolumando. Ora são abrandadas, porque acha que são sem fundamento, ora o enlouquecem e perturbam. À noite, chega a ouvir passos no jardim, fica colocado à parede e julga distinguir vultos. Atira, assusta os moradores e faz Madalena saltar da cama gritando.

A esposa está cada dia mais magra. Os tormentos de Paulo Honório o tornavam grosseiro. Não conseguia mais dormir. Ouvia o ranger da fechadura, o rumor das telhas, sendo arrastadas. Certo dia, encontra uma folha de papel no quintal e lá estava a letra de Madalena. Lê o texto e encontrando períodos riscados e palavras desconhecidas, começa achar que se trata de uma carta endereçada a um homem.

Prossegue narrando que encontra Madalena vindo da igreja. Agarra-lhe pelo braço e diz que precisam conversar. Mostra-lhe a carta, pede que se explique. Calmamente, a mulher não vê motivos para explicações. Há três anos vivem aquela vida horrível e toda vez que procuram se entender, acabam brigando. Pede ao marido para ir até sua mesa e ler o resto da carta.

Madalena atribui o fim de seu casamento ao ciúme obsessivo do marido. Pede perdão pelos desgostos causados. Paulo sente vontade de mostrar arrependimento, mas o orgulho não deixa. A esposa continua, faz-lhe pedidos, dizendo que, se morrer ele deve entregar seus vestidos a Rosa, os livros ao Padilha, Ribeiro e Gondim. Paulo Honório a convida para uma viagem à Bahia, Rio e São Paulo, quem sabe o estômago dela se cura e ela engorda. Madalena fala, como se não o ouvisse, sobre a casa úmida dos trabalhadores, suas dificuldades quando estudante. O marido estarrecido diante da estranheza de suas palavras a acha perturbada.

Paulo Honório passa a noite, dormindo sentado, e desperta pela madrugada com dores pelo corpo. Toma banho no riacho e ao retornar, encontra Madalena morta por ter tomado veneno. Lê a carta de despedida que lhe deixara. Após o féretro, D. Glória parte. O senhor Ribeiro vai tocado pelas recordações. Padilha e Padre Silvestre se incorporam às tropas revolucionárias, surgidas com a revolta no sul, centro e nordeste do país. O senhor da casa fica abandonado, o mundo para ele passa a ser "um horrível estrupício".

Passa-se o ano e, à entrada do outro, Paulo Honório vê desaparecer a avicultura, horticultura e pomicultura de seus campos. Os tempos são ruins, há falências, fugas e suicídios. Deixa as frutas apodrecerem nos pés, para não as dar de graça. Não pode comprar maquinário novo, porque o dólar está nas alturas e os bancos lhe fecharam as portas sem lhe explicarem a razão. Resolve cruzar os braços.

Dois anos após a morte de Madalena, a vida está insuportável. Afirma ter decidido recorrer aos amigos para montar a história que narra, mas eles não corresponderam à suas expectativas. Passa o dia sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café. Às vezes, atravessa a noite entregue às lembranças. Descobre que gastou cinqüenta anos com tolices, levantando cedo para correr atrás da comida e guardá-la para o filho, netos e outras gerações. Tudo tolice.

Crê que, com o final da crise que o país atravessa, poderá recuperar tudo, mas se pergunta para quê? Pensa que o melhor teria sido a escolha de um destino mais simples. Devia ter se casado com Germana, as preocupações seriam mínimas, beberia cachaça e cantaria pelos caminhos. No entanto, ali estava amargurado com a dureza na boca e nos cantos dos olhos. Recorda a vida com Madalena, acha que estragou estupidamente a existência, mas sabe que se recomeçasse tudo outra vez, repetiria as mesmas coisas. Madalena veio para sua casa cheia de boas intenções, mas ele com sua brutalidade e ignorância estragou tudo. Sente-se um homem deformado, monstruoso, diferente dos outros. Nem do filho gosta. Todos dormem, só ele permanece, ali, escrevendo, até que caia morto de fadiga.

Previous Next