SÃO BERNARDO

(...) Azevedo Gondim elaborou os estatutos, e na primeira sessão de assembléia geral Padilha foi aclamado sócio benemérito e presidente honorário perpétuo.

Relativamente à agricultura Luís Padilha acuou, esperando uns catálogos de máquinas, que nunca chegaram. Começou a fugir de mim. Se me encontrava, encolhia-se, fingia-se distraído, embicava o chapéu. No vencimento da primeira letra adoeceu. Fui visitá-lo e achei-o escondido na sala de jantar, jogando gamão com João Nogueira. Vendo-me, atrapalhou-se tanto que os dedos magros, queimados, de unhas roídas, tremiam chocalhando os dados.

Daí em diante encantou-se. Disseram-me que tinha ensebado as canelas para S. Bernardo.

– Que estará fazendo por lá?

A última letra se venceu num dia de inverno. Chovia que era um deus-nos-acuda. De manhã cedinho mandei Casimiro Lopes selar o cavalo, vesti o capote e parti. Duas léguas em quatro horas. O caminho era um atoleiro sem fim. Avistei as chaminés do engenho do Mendonça e a faixa de terra que sempre foi motivo de questão entre ele e Salustiano Padilha. Agora as cercas de Bom-Sucesso iam comendo S. Bernardo.

Dirigi-me à casa-grande, que parecia mais velha e mais arruinada debaixo do aguaceiro. Os muçambês não tinham sido cortados. Apeei-me e entrei batendo os pés com força, as esporas tinindo. Luís Padilha dormia na sala principal, numa rede encardida, insensível à chuva que açoitava as janelas e às goteiras que alagavam o chão. Balancei o punho da rede. O ex-diretor do Correio de Viçosa ergue-se, atordoado:

– Por aqui? Como vai?

– Bem, agradecido.

Sentei-me num banco e apresentei-lhe as letras. Padilha, com um estremecimento de repugnância, mudou a vista:

– Eu tenho pensado nesse negócio, tenho pensado muito. Até perdi o sono. Ontem amanheci com vontade de lhe aparecer, para combinar. mas não pude. Semelhante chuva...

– Deixemos a chuva.

– Estou em dificuldades sérias. Ia propor uma prorrogação com juros acumulados.

– E a fábrica, os arados?

Luís Padilha respondeu ambiguamente:

– Um inverso deste esculhamba tudo. Recurso não tenho, mas o negócio está garantido. A prorrogação...

– Não vale a pena. Vamos liquidar.

– Ora liquidar! Já não lhe disse que não posso? Salvo se quiser aceitar a tipografia.

– Que tipografia! Você é besta?

– É o que tenho. Cada qual se remedeia com o que tem. Devo, não nego, mas como hei de pagar assim de faca no peito? Se me virarem hoje de cabeça para baixo, não cai do bolso um níquel. Estou liso.

– Isso não são maneiras, Padilha. Olhe que as letras se venceram.

– Mas se não tenho! Hei de furtar? Não posso, está acabado.

– Acabado o quê, meu sem-vergonha! Agora é que vai começar. Tomo-lhe tudo, seu cachorro, deixo-o de camisa e ceroula.

O presidente honorário perpétuo do Grêmio Literário e Recreativo assustou-se:

– Tenha paciência, seu Paulo. com barulho ninguém se entende. Eu pago. Espere uns dias. A dívida só é ruim para quem deve.

– Não espero nem uma hora. Estou falando sério, e você com tolices! Despropósito não! Quer resolver o caso amigavelmente? Faça preço na propriedade.

Luís Padilha abriu a boca e arregalou os olhos miúdos. S. Bernardo era para ele uma coisa inútil, mas de estimação: ali escondia a amargura e a quebradeira, matava passarinhos, tomava banho no riacho e dormia. Dormia demais, porque receava encontrar o Mendonça.

– Faça o preço.

– Aqui entre nós, murmurou o desgraçado, sempre desejei conservar a fazenda.

– Para quê? S. Bernardo é uma pinóia. falo como amigo. Sim senhor, como amigo. Não tenciono ver um camarada com a corda no pescoço. Esses bacharéis têm fome canina, e se eu mandar o Nogueira tocar fogo na binga, você fica de saco nas costas. Despesa muita, Padilha. Faça preço.

Debatemos a transação até o lusco-fusco. Para começar, Luís Padilha pediu oitenta contos.

– Você está maluco? Seu pai dava isto ao Fidélis por cinqüenta. E era caro. Hoje que o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...

Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando tornamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que era a última palavra. Eu também asseverei que não pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado.

Resolvi discorrer sobre as minhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cinqüenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinqüenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele, no colégio. Cheguei a ameaçá-lo com as mãos. Recuou para cinqüenta. Avancei a quarenta e afirmei que estava roubando a mim mesmo. Nesse ponto cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roí a corda:

– Muito por baixo. Pindaíba.

Descontado o que ele me devia, o resto seria dividido em letras. Padilha endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desmanchou o que tinha feito. Viesse o advogado, viesse a justiça, viesse a polícia, viesse o diabo. Tomassem tudo. Um fumo para o acordo! Um fumo para a lei!

– Eu me importo com lei? Um fumo!

Tinha meios. Perfeitamente, não andava com a cara para trás. Tinha meios. Ia à tribuna da imprensa, reclamar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Afetei comiseração e prometi pagar com dinheiro e com uma casa que possuía na rua. Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e três em S. Bernardo. Arranquei-lhe mais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa. Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste.

Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos e quinhentos e cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1986. p.20-26.

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