SUSPIROS POÉTICOS E SAUDADES

(Prefácio)

lede

Pede o uso que se dê um prólogo ao livro, como um pórtico ao edifício; e como este deve indicar por sua construção a que Divindade se consagra o templo, assim deve aquele designar o caráter da obra. Santo uso de que nos aproveitamos, para desvanecer alguns preconceitos, que talvez contra este livro se elevem em alguns espíritos apoucados.

É um livro de poesias escritas segundo as impressões dos lugares; ora assentados entre as ruínas da antiga Roma, meditando sobre a sorte dos impérios; ora no cimo dos Alpes, a imaginação vagando no infinito como um átomo no espaço; ora na gótica catedral, admirando a grandeza de Deus, e os prodígios do Cristianismo; ora entre os ciprestes que espalham sua sombra sobre túmulos; ora enfim refletindo sobre a sorte da Pátria, sobre as paixões dos homens, sobre o nada da vida. São poesias de um peregrino, variadas como as cenas da Natureza, diversas como as fases da vida, mas que se harmonizam pela unidade do pensamento, e se ligam como os anéis de uma cadeia; poesias d'alma e do coração, e que só pela alma e o coração devem ser julgadas.

Quem ao menos uma vez separou-se de seus pais, chorou sobre a campa de um amigo, e armado com o bastão de peregrino, errou de cidade em cidade, de ruína em ruína, como repudiado pelos seus; quem no silêncio da noite, cansado de fadiga, elevou até a Deus uma alma piedosa, e verteu lágrimas amargas sobre a instabilidade das cousas da vida, e sobre a ordem providencial que reina na história da Humanidade, como nossa alma em todas as nossas ações; esse achará um eco de sua alma nestas folhas que lançamos hoje a seus pés, e um suspiro que se harmonize com o seu suspiro.

Para bem se avaliar esta obra, três cousas revela notar: o fim, o gênero, e a forma.

O fim deste livro ao menos aquele a que nos propusemos, que ignoramos se o atingimos, é o de elevar a Poesia à sublime fonte donde ela emana, como o eflúvio d'água, que da rocha se precipita, e ao seu cume se remonta, ou como a reflexão da luz ao corpo luminoso; vingar ao mesmo tempo a Poesia das profanas do vulgo, indicando apenas no Brasil uma nova estrada aos futuros engenhos.

A Poesia, este aroma d'alma, deve de contínuo subir ao Senhor; som acorde da inteligência deve santificar as virtudes, e amaldiçoar os vícios. O poeta, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do Justo, e do Belo.

Ora, tal não tem sido o fim da maior parte dos nossos poetas; e o mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber, e que pudera ter sido o reformador da nossa Poesia nos seus primores d'arte, nem sempre se apoderou desta idéia. Compõe-se uma grande parte de suas obras de traduções; e quando ele é original causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao homem civilizado, como se aquele a este superasse, como se a civilização não fosse obra de Deus, a que era o homem chamado pela força da inteligência, com que a Providência dos mais seres o distinguira!

Outros apenas curaram de falar aos sentidos; outros em quebrar todas as leis da decência!

Seja qual for o lugar em que se ache o poeta, ou apunhalado pelas dores, ou ao lado de sua beleza, embalado pelos prazeres; no cárcere, como no palácio; na paz, como sobre o campo de batalha; se ele é verdadeiro poeta, jamais deve esquecer-se de sua missão, e acha sempre o segredo de encontrar os sentidos, vibrar as cordas do coração, e elevar o pensamento nas asas da harmonia até às idéias arquétipas.

O poeta sem religião, e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos aí procuram aplacar a sede.

Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa , e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os cânticos dos poetas brasileiros.

Uma vez determinado e conhecido o fim, o gênero se apresenta naturalmente. Até aqui, como só se procurava fazer uma obra segundo a Arte, imitar era o meio indicado: fingida era a inspiração, e artificial o entusiasmo. Desprezavam os poetas a consideração se a Mitologia podia, ou não, influir sobre nós. Contanto que dissessem que as Musas do Hélicon os inspirava, que o Febo guiava seu carro puxado pela quadriga, que a Aurora abria as portas do Oriente com seus dedos de rosas, e outras tais e quejandas imagens tão usadas, cuidavam que tudo tinham feito, e que como Homero emparelhavam; como se pudesse perceber belo quem achasse algum velho manto grego, e com ele se cobrisse! Antigos e safados ornamentos, de que todos se servem, a ninguém honram.

Quanto à forma, isto é, a construção, por assim dizer, material das estrofes, e de cada cântico em particular, nenhuma ordem seguimos; exprimindo as idéias como elas se apresentaram, para não destruir o acento da inspiração; além de que, a igualdade dos versos, a regularidade das rimas, e a simetria das estâncias produz uma tal monotonia, e dá certa feição de concertado artifício que jamais podem agradar. Ora, não se compõe uma orquestra só com sons doces e flautados; cada paixão requer sua linguagem própria, seus sons imitativos, e períodos explicativos.

Quando em outro tempo publicamos um volume das Poesias da nossa infância, não tínhamos ainda assaz refletido sobre estes pontos, e em quase todas estas faltas incorremos; hoje porém cuidamos ter conseguido melhor caminho. Valha-nos ao menos o bom desejo, se não correspondem as obras ao nosso intento; outros mais mimosos da Natureza farão o que não nos é dado.

Algumas palavras acharão neste livro que nos dicionários portugueses se não encontram; mas as línguas vivas se enriquecem com o progresso da civilização, e das ciências e uma nova idéia pede um novo termo.

Eis as necessárias explicações para aqueles que lêem de boa fé e se aprazem de colher uma pérola no meio das ondas; para aqueles, porém que com olhos de prisma tudo decompõem, e como as serpentes sabem converter em veneno até o néctar das flores, tudo é perdido; o que poderemos nós dizer-lhes?... Eis mais uma pedra onde afiem suas presas; mais uma taça onde saciem sua febre de escárnio.

Este livro é uma tentativa, é um ensaio; se ele merecer o público acolhimento, cobraremos ânimo, e continuaremos a publicar outros que já temos feito, e aqueles que fazer poderemos com o tempo.

É um novo tributo que pagamos à Pátria, enquanto lhe não oferecemos cousa de maior valia; é o resultado de algumas horas de repouso, em que a imaginação se dilata, e a atenção descansa, fatigada pela seriedade da ciência.

Tu vais, ó livro, ao meio do turbilhão em que se debate nossa Pátria; onde a trombeta da mediocridade abala todos os nossos, e desperta todas as ambições; onde tudo está gelado, exceto o egoísmo; tu vais, como uma folha no meio da floresta batida pelos ventos de inverno, e talvez tenhas de perder-te antes de ser ouvido, como um grito no meio da tempestade.

Vai; nos te enviamos, cheio de amor pela Pátria, de entusiasmo por tudo o que é grande, e de esperanças em Deus, e no futuro.

ADEUS!

Paris, junho de 1836.

MAGALHÃES, Gonçalves de. Suspiros Poéticos e Saudades. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1939.

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