TERRAS DO SEM FIM

(...)

Apesar de saber de como coisas carentes de toda a importância eram aumentadas em Ilhéus, Virgílio se admirou da seriedade que Horácio concedeu ao incidente. O coronel o mandara, no dia seguinte, convidar para jantar. Virgílio aceitou encantado, procurava mesmo um pretexto para ir à sua casa e assim estar um instante próximo a Ester, sentindo sua presença, ouvindo sua voz bem-amada.

Chegou pouco antes do jantar, na porta se encontrou com Maneca Dantas que fora também convidado. O coronel o abraçou e Horácio também o apertou nos seus braços quando entraram. Virgílio os encontrou muito graves, imaginou que alguma coisa nova houvesse acontecido pra bandas de Sequeiro Grande. Já ia perguntar que novidades havia, quando a criada anunciou que o jantar estava na mesa e Virgílio de esquecia de tudo porque ia ver Ester. Mas Ester o cumprimentou friamente, Virgílio notou nos seus olhos o vestígio de lágrimas recentes. A primeira coisa que lhe ocorreu foi que Horácio havia sabido alguma coisa entre ele e Ester e que o jantar não era mais que uma cilada. Fitou de novo Ester e se deu conta que ela não estava apenas triste, estava ofendida, zangada com ele. E o coronel Horácio estava amável, mais amável do que nunca. Não, não era, com certeza, nada em relação ao caso dele com Ester. Então, que diabo seria?

Horácio e Maneca Dantas gastaram quase toda a conversa do jantar. Virgílio se recordava de outro jantar, na fazenda, quando conhecera Ester. Poucos meses se haviam passado e ela era dele, ele conhecia todos os segredos daquele corpo amado, tomara dele para si, lhe ensinara os mistérios mais doces do amor. Era sua mulher, não pensava noutra coisa senão em levá-la embora para longe daquelas terras de barulhos e mortes. Para o Rio de Janeiro, onde teriam sua casa, onde viveriam sua vida. (...)

(...)

Foi arrancado dos seus pensamentos quando, aproveitando um momento em que o diálogo entre Horácio e Maneca Dantas parara, Ester falou:

– Disse que o senhor ontem andou fazendo de cavaleiro andante, doutor Virgílio? – sorria, mas seu rosto estava triste.

– Eu? – fez Virgílio sustentando o garfo no ar.

– Ester tá falando é do barulho de ontem no cabaré... – disse Horácio. – Eu também andei sabendo.

– Mas se não houve barulho nenhum... – contou Virgílio.

E explicou o caso: se sentia infinitamente triste na véspera, saudade não sabia de que – e olhava Ester – e, tendo encontrado o coronel Maneca, este o convidou para irem ao cabaré...

Maneca Dantas olhou, rindo:

– O senhor me arrastou, doutor. conte a história direito...

Chegados no cabaré, estavam bebendo um uísque inocente quando veio falar com eles o Manuel de Oliveira. E na mesa dele estava uma mulher que Virgílio havia conhecido na Bahia, nos seus tempos de estudante. Dançaram uma valsa, quando ele pedia o bis, Juca Badaró apareceu e carregou com a mulher. Ele não tinha nenhum interesse pela mulher e nem teria se importado se Juca não houvesse, ao passar por ele, dito umas palavras desagradáveis. (...) Ester parecia indiferente às explicações, disse com uma voz afetada:

– E que tem demais? Cabaré é mesmo para rapaz solteiro, sem responsabilidade de família. O senhor faz bem em se divertir, não tem quem sofra por isso... Agora, o compadre Maneca é que não está direito... – e ameaçava com o dedo. – Tem esposa e filhos. vou contar à comadre, hein? – ameaçava sorrindo seu sorriso triste. (...)

(...)

– Deixe disso, mulher. Todo mundo tem direito de se divertir uma vez que outra, de matar as mágoas...

Agora Virgílio estava mais descansado. Já sabia o porquê da zanga de Ester, do ar forçado de indiferença, dos vestígios de lágrimas. O que não teria ela sabido através dessas incríveis solteironas da cidade, essas beatas sem o que fazer se não falar da vida alheia? E desejava tê-la nos braços para lhe explicar, em meio a mil carícias, que Margot não representava nada para ele, que dançara com ela quase por acaso. Sentia uma imensa ternura por Ester e mesmo certa vaidade de sabê-la triste por ciúmes. Na mesa, a criada serviu o café.

Horácio convidou Virgílio a passar ao seu gabinete para conservarem um assunto. Maneca Dantas foi com eles, Ester ficou curvada sobre o crochê.

(...)

– Gostei de como o senhor contou o caso a Ester. Se não ela ia ficar assustada, ela lhe estima muito, doutor. A pobre aqui não tem quase com quem conversar, tem uma educação muito diferente das outras mulheres daqui... gosta de conversar com o senhor, os dois falam a mesma língua...

Virgílio baixou a cabeça e Horácio continuou, após acender o cigarro que terminara de fazer:

– Mas aqui para nós, doutor, esse negócio de ontem tem seu lado feio. O senhor sabe o que é que Juca Badaró anda dizendo por aí?

– Não sei e, pra lhe falar a verdade, coronel, não me interessa. Os Badarós não devem gostar de mim e eu reconheço que têm razão. Sou advogado do senhor e, demais advogado do partido. É justo que eles falem mal de mim...

Horácio pôs o pé em cima de uma cadeira, estava quase de costas para Virgílio:

– Isso é com o senhor, doutor. eu não gosto de me meter na vida dos outros. só mesmo quando é um amigo como o senhor...

– Mas o que é que há? – quis saber Virgílio.

– O senhor não se dá conta, doutor, que se o senhor não tomar uma atitude, ninguém mais, me desculpe dizer, vai levar o senhor a sério nessas terras...

– Mas por quê?

– Juca Badaró anda dizendo a Deus e ao mundo que arrancou uma mulher dos braços do senhor, que lhe insultou e o senhor não reagiu. Que o senhor, me desculpe repetir, é um cagão.

Virgílio empalideceu mas logo se controlou:

– Quem assistiu ao incidente sabe que não houve nada disso. Eu já havia parado de dançar, esperava para ver se havia bis. Ainda assim, quando ele pegou no braço de Margot, eu quis intervir, foi ela quem pediu que eu não me metesse. Depois, quando ele disse aquela bobagem foi o coronel Maneca quem me segurou...

(...)

Horácio disse:

– Seu doutor, eu vim para essas terras era menino. Vai muitos anos que isso se sucedeu... Não sei de ninguém que conheça Ilhéus melhor que eu. Ninguém quer que o senhor morra, o compadre falou direito, muito menos eu que gosto do senhor e preciso do senhor. Mas também não quero que o senhor fique desmoralizado por aqui, com fama de covarde... Por isso tou lhe falando.

Parou como se tivesse feito um longo discurso. Acendeu outro fósforo, ficou com ele na mão, queimando, olhava com a cabeça voltada para o advogado como esperando palavras suas.

– O que é que o senhor acha que eu devo fazer?

Horácio jogou no chão o fósforo que lhe queimava o dedo, a ponta do cigarro continuava apagada, pequena, no lábio grosso:

– Tenho um cabra aí, homem de confiança. Na quinta-feira Juca Badaró vai subir para a fazenda, tou informado. Com cinqüenta mil-réis o senhor resolve o assunto...

Virgílio não entendia direito:

– Como?

Foi Maneca Dantas quem explicou:

– Por cinqüenta mil-réis o homem faz o serviço. Quinta-feira espera Juca na estrada, não há santo que salve ele... E, depois, ninguém mais se mete com o senhor...

Horácio animava:

– E não há perigo porque os Badarós vão dizer que fui eu quem mandou. Se houver processo é comigo... Mas, por isso não se preocupe...

Virgílio levantou-se:

– Mas isso não é coragem, coronel. Mandar um jagunço matar um homem, a sangue frio, isso não é coragem... Se fosse eu me encontrar com Juca na rua, meter a mão no rosto dele, está certo... Mas mandar um cabra dar um tiro? Pra mim isso não é coragem...

– Aqui é assim, doutor. E se o senhor pensa em fazer carreira aqui, deixe que eu chame o cabra... Se não, não tem jeito. O senhor pode ser o melhor advogado do mundo, ninguém vai procurar o senhor ...

(...)

– Vou lhe dizer uma coisa, doutor, porque sou seu amigo. De qualquer maneira eu vou mandar liquidar Juca Badaró. Já tava disposto a isso, ele matou quatro homens meus... – emendou – ... isso é, seus homens mataram, mas aqui é como se ele tivesse matado. Tocou fogo numa plantação de Firmo e atacou a casa de Braz. Tá fazendo estrepolia demais, é melhor acabar de uma vez. Pra semana vou mandar derrubar o começo da mata, Juca Badaró não vai assistir...

Parou, mais uma vez acendeu o fósforo, pitou a ponta de cigarro. Olhou Virgílio, sua voz era pesada como socos:

– Só quero fazer um favor ao senhor. O senhor dá a ordem ao cabra, e todo mundo vai saber, mesmo que eu responda júri, que foi vosmecê quem mandou liquidar Juca Badaró. E ninguém se mete mais aqui com o senhor, nem com mulher sua... Vão lhe respeitar...

Maneca Dantas bateu no ombro de Virgílio, para ele era a coisa mais simples do mundo:

– Não custa nada dizer cinco palavras...

Horácio concluiu:

– Gosto do senhor, doutor, é um homem de saber. Mas aqui nessas terras, o saber só não adianta pra ninguém, seu doutor...

Virgílio baixou a cabeça. O coronel ia mandar matar Juca, mas queria que fosse ele quem desse a ordem ao jagunço, assim ele entraria para o rol dos homens valentes de Ilhéus... Pensou em Ester na outra sala, fazendo crochê, roída de ciúmes. Sonhava viver com ela, partir para outras terras, uma terra civilizada, onde a vida humana valesse alguma coisa. Ir para longe dali, daquelas matas, daqueles povoados, daquela cidade bárbara, daquela sala onde os dois coronéis lhe aconselhavam para seu bem – para seu bem – que ele mandasse matar um homem... Fugir com Ester e seriam outras as manhãs de cada dia, mas belas as tardes, as noites sem outros queixumes que os ais de amor. Noutras terras distantes...

A voz de Horácio voltava a atravessar o gabinete:

– Se resolva, doutor...

AMADO, Jorge. Terras do Sem Fim. São Paulo: Martins Edit., 11a Ed., s/d. p. 239-245.

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