Eis outro ser: (O sopro das cavernas
alava lentas crepes e sudários
por entre harpias e harpas friorentas.)
No entanto seu monólogo: este sino
badalando nos ares, badalando
na febre entre delírios e vertigens.
Seu leito em suma: leito o vento frio,
leito a ansiedade, leito paludoso,
vagando em barco doido, todavia!
As janelas bateram: e avozinhas
com seus xales como asas, seus cuidados,
mas tão longe de mim e eu tão sozinho.
Eu o hei sentido assim, galgando o monte
empapado do céu (solo remido),
em salmoura divina como o oceano.
E seus climas: há um homem que vacila
com desolados mantos sobre os ombros,
com abolidas memórias de paraísos.
E a nostalgia sempre sobre as faces,
e o pássaro fatídico nas coisas,
e esse arúspice, e a súplica dos olhos.
E as gravuras da bíblia, a piedosa
vinheta, as altas madressilvas. Cristo!
Ó radiantes demônios, suicidai-vos.
Somos todos ainda: apenas os
passos do vento são cada vez mais
vagarosos. E as barbas crescem brancas.
Ó forças que eu não sei, ó forças várias,
que sonâmbulas asas nos carregam
ao termo das distâncias fugidias?
Ó longo país tão paralelo
com seus rostos de sombras anelantes,
porém a serpe, sempre a serpe antiga.
A estatura da vida nivelada
em dor e suor, em sangue e guerra imunda,
em olvidos de céu antes e após.
E só pressentimentos, só as horas,
a curta claridade entre os abismos
que nos assustam onde quer que vamos.
Hoje já fomos como antigos órfãos
nascidos e morridos ignorando,
ignorando as origens e os destinos.
Fala o ser duplo: elemental pastor,
figura e desnudez, raiva sagrada,
mas seu genial tamanho era uma aurora.
Fala o ser duplo: a obscura magnitude
além das soledades e vigílias,
e noite tão solar mais que insondável.
Era o herói e era a noite um só instinto,
afluentes sem ter términos e fugas
maravilhosos, transparentemente.
Os seus ofícios sempre incorruptíveis
rumos virgens capazes de guiar
os absolutos hojes desses séculos.
São luzeiros de sombras, equilíbrios,
como os lustres dos cactos solitários
e permanentes como os vôos cardiais.
Nos velhos dias, esse herói bifronte,
acaso nunca teve qualquer nome?
Chorava e ria em mim, dizia em mim,
chorava-me, brandia-me, sonhava-me.
O ser intransitivo me acenava
e ouvíamos-nos. Verbos vivos. Verbos.
Coração das quietudes – eis a pedra:
falava-nos sereno e compreensivo.
Coração das memórias, eis a pedra.
Esse ouro na fornalha era um bramido,
esse chumbo, em nevoeiro se tornava,
só a pedra escutava com seu olho.
Só o vento era pesado com seus ímpetos:
Belatrix de mostrava imponderável.
Ó desmandado vento, fostes manso!
E se viam (convite ameno) o rosto
antevisto e reaceso, e o caminho alto
em nova luz, pois que se abria puro.
Suas mãos perfuradas se aferravam
a fundas remissões de várias culpas
contidas nas medulas e nos túneis.
Pudor radioso, ao menos em seus rumos,
em suas vozes de tristezas, grandes
pedestais de antes. Gritos. Gritos quedos.
E era paisagem com essas culpas próprias,
emboscadas nas zonas medulares,
e a quietude dos ares sem tensão.
Era o rincho rasteiro e era a asa cinza,
e os ginetes das sombras galopando,
acaso entre sigilos obrigados.
Pés e mãos como Aquele, redimindo.
E tantas punições e tantas culpas.
(Vem para o baile agora, soluçando!)
Ele era visto em meio das procuras,
dos anseios dos homens tormentosos
trazidos a essa selva – selva obscura.
Cartuxas o acolheram maternais
nos ocasos cobertos de esplendores
frios nos cimos, frios das angústias.
A eternidade fluía nesses píncaros.
As ouças a escutavam, tocar íamos
o seu perpétuo ritmo para Deus.
A sua biografia que eu relato
é mera condição do pensamento
que as palavras também com Adão caíram.
Pelos quatro horizontes, só e alado,
em ar e estrela as serpes esmagando
por herança materna – o cravejado.
As palavras aladas o impeliram
em seu halo sutil de nome leve,
de febril coração manancial.
Deu-nos cânticos para ser lembrados,
peixes de prata para os barcos viúvos
suas mãos perfuradas imitávamos.
Agora e sempre está. Ausência e sol
em seu peito lunado há estações
da duração do bem e da alegria.
Medulas extraviadas, sim havia
tão lavadas de crime como as chuvas
empurradas nos pés, refeitas de ímãs.
E as albas com dessangre, os aros fundos
em desbordo contínuo, céu de terra, –
e a aventura um caminho só, no espaço.
Em verdade, é uma pátria foragida
em que o desconhecimento é até nos ossos,
e as presenças de fora nos espiam.
Os instantes maiores conviviam,
sangue diurno, parece sementeiras.
As horas casuais estão aqui.
Ó ginetes, ó cegos cavaleiros
de órbitas de betume, almas e cascos,
ventos nas crinas, rubras liberdades!
Ó potros e sinais, ambos a um tempo,
ambos num rapto, mímica total,
entranhas num só mar de julgamentos!
Os instantes deslizam-lhe na face,
ele mesmo é uma quieta ressonância
também inumerável geometria.
Ó os montes em seus olhos, as lagunas,
as águas que eram vinho, os pescadores
andarilhos do mar, violento mar!
A província de sumos e ardentias,
e as perguntas nos barcos, e as cisternas,
e os ocasos de preces e de lagos.
Golpearam-no, sem vê-lo, ó grão-teatro,
ó máscaras nos montes espectrais
e bufões convocados a apupá-lo!
Rasgou-se o véu do tempo e ele surgiu
com essa face de claune e de deus triste,
e consumou-se. Infernos aplaudiram.
Ali teu solo. Digo-te semente.
Digo-vos mananciais, sulcos de versos,
digo-vos sombras de asas, hortas, vinhas.
Eu escuto, reescuto a artéria túrgida,
e o tiritar dos dentes na porfia,
lívidos de caliça como trigos.
Cobertos de livores se profanam,
doem-se deles os puros cordeirinhos;
sina-os o dia da ressurreição.
Chorando estais, chorares silenciosos,
caindo em minhas mãos como novelos
de lãs (o pranto maternal e suave).
Missão de poeta, símbolos e vôos,
razão das asas, fé capaz de vidas,
límpido humo celeste, semental.
Homem de terras úmidas, sangradas,
sêmen dos que procriam gredas unas,
engendrado dos germes essenciais.
Tempo das mutações, tempo à deriva
flui a torrente na serena mão,
com seu laivo de avença e redenção.
Eu vos designo aqui, privado Sol
e Som de coração. O mais não urge.
O mais: afortunada translação.
COUTINHO, Afrânio (org.). Jorge de Lima. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958, vol. I. p.654-655.