A MORENINHA

As Lágrimas de Amor

— Eu lhe vou contar a história das lágrimas de amor, tal qual a ouvi de minha avó, que em pequena a aprendeu de um velho gentio que nesta ilha habitava.

Era no tempo em que ainda os portugueses não haviam feito a descoberta da Terra de Santa Cruz. Essa pequena ilha abundava de belas aves e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, muito linda e sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a fonte que hoje vemos. Ora, ela, que até aos quinze anos era inocente como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a fazer-se tímida e depois triste, como o gemido da rola; a causa disto estava no agradável parecer de um mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caçar ou pescar na ilha, e vinte vezes já o havia feito, sem que uma só desse fé dos olhares ardentes que lhe dardejava a moça. O nome dele era Aoitin; o nome dela era Ahy, que o seguia, ora lhe apanhava as aves que ele matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só sinal de reconhecimento obtinha; quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na gruta, ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava, movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas tantos extremos eram tão mal pagos, que Ahy, de cansada, procurou fugir do insensível moço e fazer por esquecê-lo; porém, como era de esperar, nem fugiu-lhe nem o esqueceu.

Desde então tomou outro partido: chorou. Ou porque a sua dor era tão grande que lhe podia exprimir o amor em lágrimas desde o coração até aos olhos, ou porque, selvagem mesma, ela já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no pranto, Ahy chorou.

E porque nas lágrimas de amor há, como nas da saudade, uma doce amargura, que é veneno que não mata, por vir sempre temperado com o reativo da esperança, a moça julgou dever separar a dor, que a fazia chorar amargores, a esperança que no pranto lhe adicionava a doçura, e, tendo de exprimir a doçura, Ahy cantou.

Seu canto era triste e selvagem, mas era terno canto. Dizem que um velho frade português, ouvindo-o por tradição ao fim de muitos anos, o traduziu para a nossa língua e fez dele uma balada, a qual minha neta canta.

Todos os dias, ao romper da aurora, a pobre Ahy subia ao rochedo, que serve de teto a esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e cantava horas inteiras, sem descanso, até que se partia o bárbaro que nunca dela dera fé, nem mesmo quando dormindo na gruta, o canto soava sobre a sua cabeça.

Mas Ahy era tão formosa e sua voz tão sonora e terna, que o mesmo que não pôde vencer do insensível moço, pôde do bruto rochedo; com efeito, seu canto havia amolecido a rocha e as suas lágrimas a transpassaram.

E o mancebo vinha sempre, ela cantava e chorava, e nunca ele atendia.

Uma vez, e já então o rochedo estava todo transpassado pelas lágrimas da virgem selvagem, uma vez veio Aoitin e, como das outras, não olhou para Ahy, nem escutou as sentidas cantigas; entregou-se a seus prazeres e, quando se sentiu fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva; mas, ao tempo que em mais sossego dormia, duas gotas das lágrimas de amor, que tinham passado através do rochedo, caíram-lhe sobre as pálpebras, que lhe cerravam os olhos. Aoitin despertou; e tomando suas flechas, correu para o mar, mas, saltando dentro de sua piroga e afastando-se da ilha, ele viu sobre o rochedo a jovem Ahy e disse bem alto:

— Linda moça!

No outro dia ele voltou e já, então olhou para a virgem selvagem, mas não ouviu ainda o canto dela; depois de caçar veio, como sempre, adormecer na gruta; e, dessa vez, a gota de lágrima lhe veio cair no ouvido; na volta não só admirou a beleza da jovem, como, ouvindo a terna cantiga, disse bem alto:

— Voz sonora!

Terceiro dia amanheceu e Aoitin viu e ouviu Ahy; caçou e cansou veio repousar na gruta e dessa vez a gota de lágrimas lhe caiou no lugar do coração e, quando voltava disse bem alto:

— Sinto amar-te!

Ora, parece que nada mais faltava a Ahy, e que a ela cumpria responder a este último grito de Aoitin, confessando também o seu amor tão antigo; mas a natureza da mulher é a mesma, tanto na selvagem, como na civilizada: a mulher deseja ser amada, fingindo não amar; deseja ser senhora mesmo de quem é escrava, e pois Ahy nada respondeu; mas riu-se, suas lágrimas secaram; porém já a este tempo as muitas que havia derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje existe.

No dia seguinte veio Aoitin, e viu a sua amada, que já não cantava, nem chorava; mesmo antes de abicar à praia, foi clamando:

— Sinto amar-te!

E Ahy não respondeu e só sorriu-se.

Nada de caça... nada de pesca... já o insensível era escravo e não vivia longe do encanto que o prendia: correu, pois, para a gruta, deitou-se, mas não dormiu. Quem ama não dorme; sentiu que em suas veias corria sangue ardente, que seu coração estava em fogo: — era a febre do amor. Aoitin teve sede, e a dois passos viu a fonte que manava; correu açodado para ao pé dela e, ajuntando suas mãos, foi bebendo as lágrimas de amor. A cada trago que bebia, um raio de esperança lhe brilhava, e quando a sede foi saciada, já estava feliz: a fonte era milagrosa.

As lágrimas de amor, que haviam tido o poder de tornar amante o insensível mancebo, não puderam esconder a sua origem e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado.

Então ele não mais buscou sua piroga. Saindo da gruta, fez um rodeio e foi, de manso, trepando pelo rochedo até chegar junto de Ahy, que, com os olhos na praia do lado oposto, esperava ver partir o seu amante e ouvir o seu belo grito: — Sinto amar-te!

Mas de repente ela estremeceu, porque uma mão estava sobre seu ombro; e quando olhou viu Aoitin, que, sorrindo-se, lhe disse num tom seguro e terno:

—Tu me amas?!

Ahy não respondeu, mas também não fugiu dos braços de Aoitin, nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou na face.

Desde então foram felizes ambos na vida e foi numa mesmo hora que morreram ambos.

A fonte nunca mais deixou de existir e há ainda quem acredite que por desconhecido encanto conserva duas grandes virtudes...

Dizem, pois, que quem bebe desta água não sai da nossa ilha sem amar alguém dela e volta, por força, em demanda do objeto amado. Em segundo lugar, querem também alguns que algumas gotas bastam para fazer a quem bebe adivinhar os segredos do amor.

— Terminei aqui minha história, disse a Sra D. Ana, espirando.

— E eu sou capaz de jurar, disse Augusto, que pela terceira vez sinto ruído de alguém que se retira correndo.

—Pois examine depressa.

Augusto correu à porta e voltou logo depois.

— E então?... perguntou a Sra D. Ana.

— Ninguém, respondeu o estudante.

— E vê alguém no jardim?...

— Apesar a Sra D. Carolina, que vai apressadamente para o rochedo.

— Sempre minha neta!...

— E eu, minha senhora, tenho que pedir-lhe uma graça.

— Diga.

— Rogo-lhe que, por sua intervenção, me facilite o prazer de ouvir sua linda neta cantar a balada de Ahy, que tanto me interessou com o seu amor.

— Oh!... não carece pedir... não a ouve cantar... sobre o rochedo?... É a balada

— Será possível?!

— Adivinhou seu pensamento.

MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. In: As Grandes Obras da Literatura, Edições e Publicações Brasil Editora. São Paulo: s/d. 3ª edição, p.82-86.

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