A MORTA

Deu um grito, não bem um grito, um gemido tão alto e doloroso que ele mesmo acordou. Estava todo suado e trêmulo de susto: "ela vai morrer", pensava com angústia. Saltou da cama, foi até a janela aberta para a noite quente, de ar parado, ficou ali, sentindo que precisava acabar de acordar, deixar sair de sua cabeça aquela opressão que era como um bloco de nuvens baixas, escuras, de onde choviam pequenas pedras negras que o feriam. Choviam também cobras viscosas – e ele estava nu, descalço e nu, encerrado em um pátio de cimento, sem poder fugir. O céu descera até perto de sua cabeça, e as nuvens eram tão densas que comprimiam o ar, assim todo o seu corpo doía sob essa pressão, o pescoço doía de maneira intolerável.

"Mau jeito no travesseiro"– pensou. Então, ouviu, nos telhados vizinhos, os miados pungentes e longos de gatos no cio e compreendeu que aqueles gatos estavam miando há muito, como mulheres em dores de parto ou crianças torturadas. sonhara tanta coisa, tanta coisa, que ainda tinha o peito opresso e a cabeça tonta. tirou e jogou longe a calça e o paletó do pijama, atravessou o quarto nu, foi para baixo do chuveiro, abriu a torneira. Não havia água. Voltou com raiva, estirou-se assim na cama, os gatos estavam miando outra vez.

"Não posso dormir"– pensava. Os pesadelos o agarrariam outra vez. Levantou-se, encheu um copo de água na talha, lavou a cara, molhou os cabelos. Que calor! Foi ao banheiro, apanhou a toalha, voltou lá dentro para encher outro copo na talha, deitou um pouco nos pulsos, depois umedeceu a toalha, passou-a pelo corpo – mas cada vez parecia sentir mais calor. Sentou-se numa cadeira, pôs um braço sobre a mesa, apoiou nele a cabeça – "vou dormir assim" – pensou; e de súbito teve a revelação do que estivera sonhando. Havia uma mulher gritando de dor, morrendo, e aquela mulher era muito ligada a ele, alguém que ele amava, e que estava morrendo com longos, insuportáveis sofrimentos. Levantou-se.

Lembrou-se de que, na morte de Maria, todos o olhavam com assombro – sua calma, os olhos secos, a diligência e a precisão com que tomou várias providências enquanto outras pessoas choravam de desespero. E compreendeu que guardara dentro de si aquela morte, intacta em toda sua dor, como uma grande pedra de diamante se queimando por dentro. E carregara dentro de si anos e anos aquela morte. vivera coisas humilhantes sem se humilhar, passara perigos e necessidades e sofrimentos com uma espécie de indiferença profunda e secreta – protegido por aquela morte que ele não quisera sofrer, que não chegara a chorar, que guardara tão fundo em si mesmo que não podia sentir quando ela doesse, que não podia ouvir os gritos rasgando o ar, a intolerável dor dele mesmo e de Maria morrendo.

E agora aquele calor da noite, os gatos miando, tudo o transportava através dos anos para outra cidade, outra casa – a casa em que estava alguém morrendo. tudo mais – o horrível pátio de cimento, as nuvens baixas chovendo cobras enroladas em pedras, tudo fora apenas um instante ao despertar, seu sonho longo e doloroso foi a morte que ele não pudera evitar, a morte que veio de maneira mais cruel e que ele no seu egoísmo de animal jovem se negara a sentir, se negara terminantemente a pensar, se negara a sofrer.

Vestiu-se rapidamente, telefonou pedindo um taxi, saiu, foi para um lugar onde se bebia e dançava, um amigo perguntou onde estivera até aquela hora da madrugada, ia respondendo – "em casa" –, respondeu – "por aí" –, porque falar em casa era falar na morta, e precisava esconder seu corpo dilacerado, seu sofrimento, sua intolerável agonia que não acabava nunca, nunca mais.

Rio, novembro de 1952.

BRAGA, Rubem. A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1963. p. 62-64.

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