CAMINHOS CRUZADOS

Sábado

1

Madrugada – a cerração empresta à Travessa das Acácias um mistério de cidade submersa. A ruazinha de subúrbio se desfigura. A luz dos combustores, que a névoa embaça, sugere vagos monstros submarinos. As árvores que debruam as calçadas são como blocos compactos de algas. Todas as formas parecem diluídas.

Cinco horas da manhã.

Que peixe estranho é aquele que lá vem?

A carroça do padeiro passa estrondando, fazendo tremer a quietude da cidade afundada; mas um instante depois o seu vulto e o seu ruído se dissolvem de novo na cerração.

O silêncio torna a cair sobre o fundo do mar.

Agora nas fachadas escuras começam a brotar olhos quadrados e luminosos. D. Veva acendeu o lampião e vai acordar o marido que tem de tomar o primeiro bonde. No mercadinho de frutas, Said Maluf abre a porta dos fundos para apanhar a garrafa de leite. Na casa do alfaiate espanhol chora o filho mais moço. Na meia-água vizinha, o Capitão Mota toma chimarrão na varanda, em mangas de camisa (está fazendo frio, mas não se deve quebrar um hábito de vinte anos). Fiorello já abriu a sapataria e, enquanto ferve a água para o café, o italiano bate sola, bate sola, bate sola; na litogravura da folhinha, na parede, Mussolini em cima do seu cavalo berra marcialmente: "Camicie nere!"

Um trem apita. Um galo canta.

Quase invisível dentro da névoa, um gato cinzento passeia sobre o telhado da casa da viúva Mendonça. Debaixo desse telhado fica o quarto do Professor Clarimundo. A umidade desenha figuras indecifráveis nas paredes caiadas. Em cima da mesa de pinho – de mistura com os restos da merenda da noite – vê-se um papel cheio dos rabiscos com que o professor tentou inutilmente meter na cabeça do sapateiro Fiorello noções da Relatividade de Einstein. Um despertador niquelado está dizendo tique-taque, tique-taque com voz dura e regular. A cabeça descansando no travesseiro de fronha grosseira, o Professor Clarimundo Roxo dorme de ventre para o ar, ronca e bufa, procurando uma sincronia impossível com o tique-taque do relógio. A cada bufido, voam-lhe as falripas do bigode.

Um rato mete a cabeça para fora dum buraco do rodapé. Espia, fica parado por alguns segundos e depois deita a correr, sobe pela perna da cadeira, chega ao assento de palhinha, detém-se um segundo e em seguida continua a subir pela guarda, salta para cima da mesa e avança sobre os restos da merenda. Queijo e pão. O seu rabinho fino se confunde com os riscos do papel.

Os roncos do professor e o tique-taque do relógio prosseguem no seu concerto. Estrala uma viga no teto. Lá fora mia o gato madrugador. O professor se remexe, a cama guincha, o rato se assusta e foge para o buraco.

Dentro destas quatro paredes, deste pequeno mundo tridimensional cabe agora o mundo infinitamente mais vasto dentro do qual o Professor Clarimundo anda perdido.

Uma extensão verde e plana como a dos campos da fronteira onde ele passou a primeira infância. Clarimundo corre, aflito, porque um touro vermelho o persegue, bufando. As suas pernas pesam como chumbo. Ele quer gritar, pedir socorro, mas a voz lhe falta. O touro se aproxima, Clarimundo já sente na nuca o seu bafo quente e úmido. Por fim consegue arrancar da garganta algumas palavras: "Acudam! Ataquem o touro! Socorro!" Mas as palavras lhe saem da boca em símbolos matemáticos. Passam perto tropeiros a cavalo. Olham e parecem não enxergar... Clarimundo continua a gritar, mas ninguém o entende. O touro o alcança e, cheio de pavor, Clarimundo sente no sexo (estranho, pois o touro vinha por trás) uma dor dilacerante. As aspas pontudas lhe rasgam as carnes, o sangue começa a escorrer e Clarimundo sente um desfalecimento mortal e inexplicavelmente cheio de gozo. De súbito a paisagem se transforma. Agora ele está nas montanhas nevadas da Suíça, passeando com Einstein, de braços dados, numa grande intimidade. Tenta em vão explicar ao sábio a Teoria da Relatividade. Fala, gesticula, risca sinais complicados na neve, grita, ameaça até, mas Einstein sacode a cabeça negativamente. Ao mesmo tempo Einstein não é mais Einstein mas sim o sapateiro Fiorello...

A paisagem branca se estende a perder de vista. Lá no horizonte longínquo, uma casa. Clarimundo sabe que dentro dela encontrará luz, calor, aconchego e pão. Está com fome, com frio e sozinho, pois todos os homens do mundo o abandonaram na solidão branca. E ele caminha, caminha... Mas à medida que avança a casa vai recuando.

Agora não é mais a paisagem suíça. Clarimundo anda flutuando no éter, viajando pelo infinito.

(No outro mundo, no de quatro paredes, o despertador continua a tiquetaquear. O rato tenta uma nova incursão. O armário range. O rato recua.)

Clarimundo continua a vagar pelo espaço sem limites.

(O despertador começa a tilintar.)

Que ruído será este, tão longínquo e misterioso? Deve ser a tão falada música das esferas...

Clarimundo se deixa ir ao sabor das ondas, porque agora ele bóia à superfície do pacífico. A música cresce de intensidade, mas à medida que aumenta vai perdendo a melodia até ganhar a evidência dum sinal de alarme.

O professor aos poucos abre os olhos. Por um instante, emergindo das profundezas do sonho, fica pairando numa região de lusco-fusco, entre os dois mundos.

O relógio continua a tilintar.

Cinco segundos. O milagre acontece: o infinito é devorado pelo finito: o mundo ilimitado do sonho desaparece dentro do mundinho de quatro paredes que o despertador enche com sua voz metálica.

Clarimundo desperta. Lança um olhar torvo para o relógio. Cinco e meia. Com alguma relutância joga as pernas para fora da cama, com o camisolão de dormir sungado até as coxas. O contato do chão frio na sola dos pés é um novo chamado à realidade. Clarimundo se ergue, coçando a cabeça, olha em torno, estremunhado, como quem não sabe ainda onde se acha. Ainda estonteado, acende a luz e faz calar o despertador.

Vai ao lavatório de ferro, emborca o jarro sobre a bacia e a água fria apaga o último vestígio do outro mundo. Clarimundo coordena idéias: sábado, Francês para a filha do Cel. Pedrosa, Matemática e Latim no curso noturno e... – com as mãos suspensas, úmidas, pingando, aproxima-se para o horário que está colado à parede – ... Português para o filho do Desembargador Florindo. Bom.

Veste-se. Alisa a franja eriçada: o pente se emaranha e verga na maçaroca dos cabelos. O espelho de moldurinha dourada reflete uma cara amassada, de barba azulando, olhos mansos de criança, o tufo agressivo do bigode negrejando abaixo do nariz curto.

Clarimundo ajusta os óculos e, religiosamente, como tem feito todas as manhãs de sua vida, vai ao calendário arrancar a folhinha.

Sorri. sorri porque sabe que o Tempo realmente não é o que a viúva Mendonça ou o sapateiro Fiorello pensam...

Existirá mesmo o Tempo? Como foi que disse Laplace? "Le temps est pour nous (Clarimundo pronuncia mentalmente as palavras, com um refinamento inocentemente pedante) l'impression que laisse dans la mémoire une suite d'événements dont nous sommes certains que l'existence a été successive." Vinte e dois séculos antes, Aristóteles tinha afirmado quase a mesma coisa. Engraçado... (Clarimundo olha da folhinha para o relógio.) A gente vive escravizado ao tempo. Ele, por exemplo... Vivia assombrado pelo relógio e pelo horário. Se chega dois minutos atrasado para uma aula, entra, os olhos no chão e um sentimento de culpa que o perturba e humilha. No entanto, pensando bem, que é o Tempo? Homero só admitia duas divisões do Tempo: a manhã e a tarde. Assim mesmo escreveu a Ilíada. E ele, Clarimundo, o homem do relógio, o escravo fiel das horas, que fez nos seus quarenta e oito anos de vida? Preparou espíritos, estudou e compreendeu Einstein, escreveu artigos para jornais, notas sobre Filosofia, Matemática, física e Astronomia recreativa... E, por falar em Astronomia recreativa, estão ali na gaveta da mesa as notas para o seu futuro livro, para a sua obra. Clarimundo pensa nela com carinho. Vai ser um trabalho grande e sólido em que há de pôr todo o seu talento, toda a sua cultura. Será como que a coroa dourada de sua vida de solteirão solitário. nesse livro de fundo científico, fazendo uma concessão magnânima à fauna representada pela viúva Mendonça e pelo sapateiro Fiorello, ele respingará aqui e ali algumas gotinhas de fantasias.

Pensando nisto o professor sorri com a condescendência dum gigante truculento que resolve uma vez na vida ser amável para com as crianças.

Mas enfim os ponteiros se movem, os minutos passam e a gente não pode ficar uma hora inteira assim a revirar entre os dedos a folhinha e a pensar na vida...

Clarimundo acende o fogareiro Primus e põe sobre ele a chaleira d'água.

Esfregando as mãos numa antecipação feliz, como um homem prestes a saborear o seu prato predileto, senta-se à mesa e abre um livro. Como de costume: quarenta minutos rigorosos de leitura.

Uber die spezielle und die allgemeine Relativitätstheorie gemeinverständlich, von A. Einstein.

O espírito do professor monta na vassoura mágica e vai fazer uma excursão pelo país das maravilhas.

Outra vez os dois mundos: o infinito dentro do finito.

No mundo menor o fogareiro, com o seu chiar grosso e contínuo, canta um dueto com o relógio.

VERISSIMO, Erico. Caminhos Cruzados. São Paulo: Editora Globo, 1960, p.13-17

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