INCIDENTE EM ANTARES

(...)

O Dr. Cícero Branco puxa as asas da borboleta de sua gravata.

– O meu caro colega terminou? – pergunta. – Pois então desça do banco. sua posição nesse poleiro é tão ridícula e abstrusa quanto os argumentos que apresentou contra nós. Pois está muito bem! Ouvida a "acusação", peço ao colendo juiz de Direito vênia para proceder à defesa de meus constituintes. Se ele não ma conceder, falarei assim mesmo, e desde já vou avisando que essa defesa será também uma acusação. E vós, antarenses, aproximai-vos o mais possível do coreto para me ouvir melhor, pois o que vou revelar agora é do vosso maior interesse.

As três irmãs Balmacedas, velhotas solteironas conhecidas na cidade como mestras do mexerico, grandes janeleiras e, segundo a voz do povo, autoras das mais virulentas cartas anônimas que circulam em Antares, acercam-se excitadas do coreto, cada qual com a sua sombrinha aberta – roxo, malva, rosa – os lenços de cambraia recendentes a Heno de Pravia apertados contra a boca e o nariz. O cronista social de A Verdade ousa dar alguns passos à frente mas de súbito se dobra sobre si mesmo e, numa convulsão, despeja sua viscosa angústia sobre uns lírios aquáticos. Dois enfermeiros do Salvator Mundi acorrem, e levam Scorpio numa padiola para dentro da ambulância. Num outro setor da praça o pessoal do Hospital Repouso atende ao primeiro caso de insolação. Os próceres confabulam animadamente. E depois que a ordem e o silêncio se restabelecem, o Dr. Cícero continua o seu discurso:

– A julgar pelas palavras do prefeito municipal e do promotor público, nossa presença é indesejável na cidade, incômoda aos seus habitantes. Em suma, nosso desaparecimento foi plenamente aceito por todos, o que vem confirmar a minha teoria de que se por um lado o homem jamais se habitua à idéia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. Vossa repulsa e vossa má vontade para com nossos corpos nos outorga a liberdade de dizer o que realmente pensamos de vós.

Tibério Vacariano dá um passo à frente e ergue a mão:

– Não estamos interessados na sua opinião!

– Cala a boca, coronelote! – grita alguém de dentro dum cedro. Outra vaia irrompe: "Ve-lho po-dre! Ve-lho po-dre! Ve-lho po-dre!"

Tibério tira o revólver do coldre, ergue-o, apontando-o para uma das árvores, e grita:

– Morte aos bugios! Morte aos bugios!

Inocêncio Pigarço agarra-lhe o braço armado, baixa-o de maneira a que o cano do revólver fique voltado para o chão e, ajudado pelo prefeito, consegue desarmar o patriarca dos Vacarianos. O Dr. Lázaro corre dum lado para outro, com a sombrinha sempre erguida:

– A trinitrina, coronel, a trinitrina!

XLVIII

O Dr. Cícero Branco ergue os braços, num largo gesto, como para abranger a praça e a cidade.

– Hipócritas! – exclama. – Impostores! Simuladores! Eis o que sois... Vista deste coreto, do meu ângulo de defunto, a vida mais que nunca me parece um baile de máscaras. Ninguém usa (nem mesmo conhece direito) a sua face natural. Tendes um disfarce para cada ocasião. Cada um de vós selecionou sua fantasia para a Grande Festa. O Prof. Libindo travestiu-se de sábio. O Dr. Lázaro representa o papel de médico humanitário, espécie de santo municipal, a personificação da bondade desinteressada. O Dr. Quintiliano é a própria imagem da justiça, os olhos vendados (os dois ou um só?), numa das mãos a espada e na outra uma balança de fiel duvidoso. O nosso digno promotor freqüentemente enverga a sobrecasaca de Rui Barbosa e dança a grande polonaise da Cultura. O nosso Vivaldino Brazão, ah! esse é alternadamente Dr. Hyde, que faz vista grossa às violências de sua polícia e às próprias patifarias, e o Dr. Jeckyll, que cultiva delicadas orquídeas. Faça-se justiça ao nosso truculento Cel Vacariano, pois ele ostenta com naturalidade e coragem cívica o manto antipático do poder discricionário, que herdou de seus ancestrais, dessa estirpe de bandidos, abigeatários e contrabandistas históricos...

O Cel. Tibério ergue-se, estentóreo, e grita:

– Façam esse cão hidrófobo calar a boca! Onde está a polícia! – Diz isto e praticamente cai sobre um banco, resfolgante.

O advogado dos mortos continua:

– O Dr. Falkenburg usa psicologicamente com uma empáfia prussiana o boné imaginário de estudante de Heidelberg e sua cara ostenta a cicatriz fictícia dum duelo universitário... e no entanto, que ele nunca visitou a Alemanha todos nós sabemos. Formou-se numa obscura faculdade do interior do Estado. E quem mais vejo na festa? Ah! O delegado Inocêncio Pigarço... Esse sádico esconde o seu uniforme negro de oficial da S.S. de Hitler debaixo do camisolão do anjo da guarda que zela pela ordem no "salão de baile". E que baile! Também tomei parte nele e usei mil máscaras, mil disfarces. Aprendi a manipular a moeda corrente (falsa mas fácil) das mentirinhas cotidianas, das grandes mentiras e das meias verdades... Tornei-me um mestre em todas as vossas danças e contradanças. Respeitei o vosso código, que manda aceitar as imposturas e simulações dos outros mascarados para que eles, em retribuição, aceitem as nossas...

Uma gritaria de bravos e aplausos jorra das árvores. Quando o ruído e a fúria cessam, Cícero prossegue:

– Avisto daqui o presidente do Rotary. Com que roupa está vestido? Ah! Exibe um modelo Dale Carnegie. E o do Lions? Esse segue o figurino de Napoleon Hill. O digno presidente da Associação Comercial, se não me engano, procura vestir-se de acordo com os grandes empresários americanos. E lá está o nosso inefável Lucas Lesma, que usa uma imitação barata da máscara de Hearst. – Leva a mão em pala sobre os olhos. – Quem mais está no baile? Não me é fácil reconhecer todos os convivas, porque eles agora têm sobre as máscaras os lenços com que procuram proteger-se de nossas emanações cadavéricas... Lá estão as Balmacedas, do sindicato das cartas anônimas... Vejo também damas nesta praça, algumas de nossas "dez mais" de anos passados, imitadoras da Princesa Grace Kelly, sim, e Terezinha de Jesus... e Mme. Pompadour... e Coco Chanel... e Jacqueline Kennedy... e Elizabeth Taylor... Quanto às máscaras retocadas por cirurgiões plásticos que vejo na multidão... bom, nessas nem vou falar.

As moscas zumbem ao redor da cabeça do advogado dos defuntos. (Comentando mais tarde a "cena da praça" no seu famoso artigo sobre o "incidente"– mas sem repetir especificamente as palavras de Cícero Branco – Lucas Faia escreveria: "O que até agora não consigo explicar é por que todos nós continuávamos ali, em pleno olho dum sol implacável, a ouvir insultos, calúnias e mentiras em meio daquele pavoroso hálito sepulcral, vendo cair a nosso redor vítimas de insolação, e ouvindo os gritos de pessoas que se debatiam em crises nervosas. Chego a pensar que era um sortilégio maléfico que prendia ao chão da praça homens da honorabilidade do Pe. Gerôncio Albuquerque, do Cel. Tibério Vacariano, do nosso prefeito, do juiz de Direito, do promotor público e outras pessoas gradas. Poderíamos voltar as costas àqueles sete mortos, retirar-nos para nossas casos e deixá-los apodrecendo no coreto, devorados pelos urubus que voavam à baixa altura sobre a praça. No entanto lá estávamos estarrecidos, paralisados, como se na realidade o Juízo Final tivesse chegado e o Dr. Cícero Branco, por uma dessas aberrações teológicas inexplicáveis, fosse uma espécie de anjo, de promotor não de Deus – oh não! – mas do demônio, a atirar insultos e mentiras sobre as cabeças dos mais dignos habitantes de Antares!")

XLIX

– É incrível – prossegue Cícero Branco, enquanto Barcelona lhe puxa repetidamente pela manga do casaco, como se quisesse dizer-lhe algo – que só agora que estou morto e decomposto é que ouso dizer-vos estas coisas. Será que a verdade fede e é só da mentira que se evolam os doces perfumes da vida? Será que o famoso poço da lenda em cujo fundo se esconde a verdade, é feito de lodo e podridão?

O Prof. Libindo Olivares cobra coragem, afasta por um momento do nariz e da boca o lenço com que se defende dos miasmas dos mortos, e pergunta:

– Mas que é a Verdade?

Cícero Branco fita no professor suas pupilas mortas e responde, sorrindo:

– Não me venhas com essa paródia de Jesus diante de Pilatos, meu inefável paranóico! Estou falando na verdade com v minúsculo. E você sabe o que é a verdade? Não sabe porque vive uma mentira crônica. Falsa é a sua moral. Falsa a sua cultura. Falsa a sua proclamada amizade e correspondência com celebridades mundiais como Sartre, Mauriac, o Papa... sei lá mais quem! Seu latim é de ginasiano. Seu grego, mitológico. Sua cultura, um produto de leituras das Seleções do Reader's Digest.

os arborícolas rompem num coro – "Men-ti-ro-so! Men-ti-ro-so! Men-ti-ro-so!". Mas calam-se a um gesto de Cícero Branco, que agora escuta algo que Barcelona lhe diz ao ouvido.

– Nosso anarco-sindicalista acaba de me soprar um "fecho de ouro" para a minha metáfora do baile de máscaras... Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte na festa e se amontoa lá fora no sereno, envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, essa deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe decidir invadir o salão onde vos entregais às vossas danças, libações, amores e outros divertimentos.

– Demagogia de além-túmulo! – brada o Prof. Libindo, de dedo erguido, mas o rosto lívido.

Sentado sempre na relva, como num limbo, o pescador subaquático olha ora para o advogado dos defuntos ora para o grupo dos pró-homens, como quem segue a bola numa partida de tênis. Os urubus, agora em número crescido, voam a uns cinqüenta metros acima da praça. Um deles pousa na platibanda do palacete dos Campolargos. Um garoto que está sentado na janelinha da água-furtada dum sobrado vizinho, de estilingue em punho, carrega a sua arma, fecha um olho, mira o urubu, puxa a borracha e depois solta-a: a pedra parte, zunindo, mas erra o alvo e estilhaça o vidro de uma das janelas da mansão.

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. Porto Alegre: Editora Globo, 1979. p.340-345.

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