LIRA I, Parte II

Já não cinjo de louro a minha testa,

Nem sonoras canções o Deus me inspira:

Ah! que nem me resta

Uma já quebrada,

Mal sonora Lira!

Mas, n'este mesmo estado, em que me vejo,

Pede, Marília, Amor que vá cantar-te:

Cumpro o seu desejo;

E ao que resta supra

A paixão e a arte.

A fumaça, Marília, da candeia

Que a molhada parede ou suja, ou pinta,

Bem que tosca, e feia,

Agora me pode

Ministrar a tinta.

Aos mais preparos o discurso apronta;

Ele me diz, que faça do pé de uma

Má laranja ponta

E d'ele me sirva

Em lugar de pluma.

Perder as úteis horas não, não devo;

Verás, Marília, uma idéia nova:

Sim, eu já te escrevo,

Do que esta alma dita

Quando amor aprova.

Quem vive no regaço da ventura

Nada obra em te adorar, que assombro faça:

Mostra mais ternura

Quem te estima e morre

Nas mãos da desgraça.

N'esta cruel masmorra tenebrosa

Ainda vendo estou teus olhos belos,

A testa formosa,

Os dentes nevados,

Os negros cabelos.

Vejo, Marília, sim, e vejo ainda

A chusma dos Cupidos, que pendentes

D'essa boca linda

Nos ares espalham

Suspiros ardentes.

Se alguém perguntar, onde eu te vejo,

Responderei: No peito, que uns amores

De casto desejo

Aqui te pintarão

E são bons pintores.

Mal meus olhos te viram, ah! n'essa hora

Teu retrato fizeram, e tão forte,

Que entendo, que agora

Só pode apagá-lo

O pulso da morte.

Isto escrevia, quando, ó Céus, que vejo!

Descubro a ler-me os versos o deus louro:

Ah! dá-lhes um beijo,

E diz-me que valem

Mais que letras de ouro.

GONZAGA, Tomás A. Os Melhores Poemas. Seleção de Alexandre Eulálio. São Paulo: Global, 1983, p.133-135.

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