Já não cinjo de louro a minha testa,
Nem sonoras canções o Deus me inspira:
Ah! que nem me resta
Uma já quebrada,
Mal sonora Lira!
Mas, n'este mesmo estado, em que me vejo,
Pede, Marília, Amor que vá cantar-te:
Cumpro o seu desejo;
E ao que resta supra
A paixão e a arte.
A fumaça, Marília, da candeia
Que a molhada parede ou suja, ou pinta,
Bem que tosca, e feia,
Agora me pode
Ministrar a tinta.
Aos mais preparos o discurso apronta;
Ele me diz, que faça do pé de uma
Má laranja ponta
E d'ele me sirva
Em lugar de pluma.
Perder as úteis horas não, não devo;
Verás, Marília, uma idéia nova:
Sim, eu já te escrevo,
Do que esta alma dita
Quando amor aprova.
Quem vive no regaço da ventura
Nada obra em te adorar, que assombro faça:
Mostra mais ternura
Quem te estima e morre
Nas mãos da desgraça.
N'esta cruel masmorra tenebrosa
Ainda vendo estou teus olhos belos,
A testa formosa,
Os dentes nevados,
Os negros cabelos.
Vejo, Marília, sim, e vejo ainda
A chusma dos Cupidos, que pendentes
D'essa boca linda
Nos ares espalham
Suspiros ardentes.
Se alguém perguntar, onde eu te vejo,
Responderei: No peito, que uns amores
De casto desejo
Aqui te pintarão
E são bons pintores.
Mal meus olhos te viram, ah! n'essa hora
Teu retrato fizeram, e tão forte,
Que entendo, que agora
Só pode apagá-lo
O pulso da morte.
Isto escrevia, quando, ó Céus, que vejo!
Descubro a ler-me os versos o deus louro:
Ah! dá-lhes um beijo,
E diz-me que valem
Mais que letras de ouro.
GONZAGA, Tomás A. Os Melhores Poemas. Seleção de Alexandre Eulálio. São Paulo: Global, 1983, p.133-135.