MORTE

(Hora de Delírio)

Pensamento gentil de paz eterna,

Amiga morte, vem. Tu és o termo

De dous fantasmas que a exigência formam,

— Dessa alma vã e desse corpo enfermo.

Pensamento gentil de paz eterna,

Amiga morte, vem. Tu és o nada,

Tu és a ausência das moções da vida,

Do prazer que nos custa a dor passada.

Pensamento gentil de paz eterna,

Amiga morte, vem. Tu és apenas

A visão mais real das que nos cercam,

Que nos extingues as visões terrenas.

Nunca temi tua destra,

Não sou o vulgo profano;

Nunca pensei que teu braço

Brande um punhal sobr'- humano.

Nunca julguei-te em meus sonhos

Um esqueleto mirrado;

Nunca dei-te, pra voares,

Terrível ginete alado.

Nunca te dei uma fouce

Dura, fina e recurvada;

Nunca chamei-te inimiga,

Ímpia, cruel, ou culpada.

Amei-te sempre: — e pertencer-te quero

Para sempre também, amiga morte.

Quero o chão, quero a terra, — esse elemento

Que não se sente dos vaivéns da sorte.

Para tua hecatombe de um segundo

Não falta alguém? — Preencha-a comigo:

Leva-me à região da paz horrenda,

Leva-me ao nada, leva-me contigo.

Miríadas de vermes lá me esperam

Para nascer de meu fermento ainda,

Para nutrir-se e meu suco impuro,

Talvez me espera uma plantinha linda.

Vermes que sobre podridões refervem,

Plantinha que a raiz meus ossos ferra,

Em vós minha alma e sentimento e corpo

Irão em partes agregar-se à terra.

E depois nada mais. Já não há tempo,

Nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto.

Agora o nada, — esse real tão belo

Só nas terrenas vísceras deposto.

Facho que a morte ao luminar apaga,

Foi essa alma fatal que nos aterra.

Consciência, razão, que nos afligem,

Deram em nada ao baquear em terra.

Única idéia mais real dos homens,

Morte feliz — eu quero-te comigo,

Leva-me ao nada, leva-me contigo.

Também desta vida à campa

Não transporto uma saudade.

Cerro meus olhos contente

Sem um ai de ansiedade.

E como autômato infante

Que inda não sabe mentir,

Ao pé da morte querida

Hei de insensato sorrir.

Por minha face sinistra

Meu pranto não correrá.

Em meus olhos moribundos

Terrores ninguém lerá

Não achei na terra amores

Que merecessem os meus.

Não tenho um ente no mundo

A quem diga o meu — adeus.

Não posso da vida à campa

Transportar uma saudade.

Cerro meus olhos contente

Sem um ai de ansiedade.

Por isso, ó morte, eu amo-te e não temo:

Por isso, ó morte, eu quero-te comigo.

Leva-me à região da paz horrenda,

Leva-me ao nada, leva-me contigo.

FREIRE, Junqueira. Morte. In: Massaud Moisés (org.) A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1984, p.153-154.

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