O ANJO ENGRAXATE

Como soubeste,

ó anjo da rua,

que tenho os pés

de crocodilo?

Como soubeste,

ó anjo da rua,

que o meu sapato

já foi lacustre?

e que preciso hoje

ficar ilustre?

Como soubeste,

ó anjo da rua,

que eu quero ter

(pra que ninguém,

hoje, me eclipse)

os pés de barro

resplandecentes

como os dos anjos

do Apocalipse?

II

Pequei com alma,

pequei com o pensamento,

pequei com o corpo.

só não pequei com os pés.

Vivo de pés no chão

e cabeça no céu.

(No céu ou na lua?)

Ainda agora senti

certo gosto de céu

como se houvesse beijado

uma santa, na rua.

Tenho os pés inocentes

mas em minha cabeça

moram os meus pecados

azuis e dourados.

Nem há mal algum

em ter pés inocentes.

Pois Cristo não lavou

os pés aos seus apóstolos?

Vivo de pés no chão

e cabeça no céu.

Mas não é o meu chapéu

que ponho atrás da porta

na noite de maior

inocência.

São os meus sapatos.

(Reflexões que fiz, em pé, pecador tranqüilo, parado numa esquina, enquanto o pequeno engraxate ambulante, um italianinho de olhos azuis, me lustrava os sapatos de crocodilo.)

BRAGA, Rubem (org.) Cassiano Ricardo - Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p.71-73.

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