O ATENEU

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As desventuras do pobre rapaz e as minhas próprias haviam-me levado para o Franco. Eu me constituíra para ele um quase amigo. Franco era silencioso, como arreceado de todos, tristonho, de uma melancolia parente da imbecilidade; tinha acessos refreados de raiva, queixas que não sabia formular. Os livros, causa primeira de seus desgostos, faziam-lhe horror. A necessidade de escrever por castigo promovera nele a habilidade dos galés: adquirira um desembaraço pasmoso na faina de encher de garranchos páginas e páginas. Esta interminável escrita fizera-lhe calos ao canto das unhas: meus dedos perderam o brio, dizia ele nos momentos de amargo humor, em que improvisava sarcasmos contra si mesmo.

A princípio fugia de mim, resmungando coisas indecifráveis. Depois aceitou-me. Mas não excediam as suas confidências o restritíssimo limite de uns grunhidos de aversão, histórias de desastres pândegos que sabia, ingênuas observações a respeito de assuntos infantis, referências de ódio aos superiores.

Uma vez recebeu carta da província, uma das poucas que lhe chegavam por ano. Depois da leitura percebi que tinha lágrimas nos olhos. O pranto era-lhe um acontecimento na fisionomia, invariavelmente de uma pasmaceira de máscara de arame. Interessei-me por aquele sofrimento; ele deu-me a carta a ler. O pai de Franco era um pobre desembargador desterrado nos confins de Mato Grosso, com oito filhos. Uma carta dolorosa. Fora entregue diretamente pelo caixeiro correspondente, escapando à curiosidade do diretor, que gostava de espiar a correspondência dos alunos. Falava em vir à corte no fim do ano, com todos os sacrifícios, falava em encontrar o filho bom menino, educado, estudioso. Contava depois, entre exclamações consternadas, que uma filha, a mais velha, desaparecera do colégio onde estava, em companhia de um professor de piano, homem casado, sendo encontrada três ou quatro dias depois ao abandono. Em vão tinham feito perguntas à infeliz no interesse da punição do culpado; sepultara-se a mocinha num mutismo desolador, como se houvesse perdido a voz, recusando alimento, não tirando do chão os olhos desvairados, escravos da contemplação demente da vergonha.

– Como tem descido Sérgio, lastimavam os inspetores, palestrando a ordem do dia com o diretor, é o íntimo do Franco.

Ainda que isso não fosse rigorosamente exato, não foi surpresa para mim ver o excomungado convidar-me para uma extraordinária empresa à noite. "Vingar-me da corja!" murmurava, gargarejando um riso incompleto e azedo. Isto à tardinha, depois da ginástica, no mesmo dia do processo da bomba.

Conseguira no lusco-fusco escapar à sala onde o haviam encerrado para a tarefa das páginas. E juntos eu e ele, porque eu lhe aceitara o convite com uma facilidade que ainda hoje não compreendo, galgamos um canto de muro que havia no pátio e saltamos para o jardim florestal.

Embaixo das árvores era já noite espessa. Demos uma volta no escuro acompanhando a curva de uma alameda. O Franco ia adiante calado, andando leve e rápido como uma sombra no ar. Eu o seguia irresistivelmente como sonhando, num sonho de curiosidade e de espanto. Que ia fazer o Franco? Aonde ia ele? Chegamos ao capinzal, a um de cujos lados extremos ficava a natação. Logo ao portão de ingresso nesse terreno, havia um depósito de lixo, onde os jardineiros acumulavam as varreduras da chácara, negrejando putrefatas, virando estrume ao tempo.

Franco deteve-se junto ao monturo. Sempre em silêncio e ativamente, para não perder aquele raro estímulo de vontade que o impelia, foi examinando o lixo com o pé.

A um canto, entre tocos de bambu, tiniram garrafas. Franco abaixou-se e como em ação mecânica, sem se voltar, apanhou uma garrafa, outra e outra; foi-me dando, sobraçou ainda outras e prosseguimos, o Franco adiante, leve e rápido, sempre no seu andar de sombra, como suspenso e difuso na névoa quase lúcida do campo aberto.

Atravessamos o capinzal quase sumidos entre as altas bandas de capim-d'angola, cuja escura vastidão se constelava de vagalumes e vibrava da grita intensa dos grilos e do clamor dos sapos. Diante da natação o Franco parou e me fez parar. "A minha vingança!" disse entre dentes, e me indicou a toalha d'água do grande tanque. A massa líquida, imóvel, na calma da noite, tinha o aspecto de lustrosa calçada de azeviche; algumas estrelas repetiam-se na superfície negra com uma nitidez perfeita.

Com o mesmo modo atarefado de todo aquele singular empreendimento, o Franco acercou-se de mim, tirou-me as garrafas que me dera e desapareceu da minha vista.

Eu ouvi que ele quebrava as garrafas uma por uma. Daí a pouco reaparecia, trazendo as abas da blusa em regaço. E começou a lançar então com o maior sossego ao tanque, para todos os lados, ali, dispersamente, como semeando, as lascas do vidro que partira. Um breve rumor de mergulho borbulhava à flor d'água, abrindo-se em círculos concêntricos os reflexos do céu. Eu vi muitas vezes contra o albor mais claro do muro fronteiro, passando, repassando, a sombra do sinistro semeador.

"A minha vingança!" repetiu-me ainda o Franco. "Para o sangue, sangue, acrescentou com o risinho seco. Amanhã rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu me vingo!"

Ao falar mostrava-me o lenço que enxugara o sangue do golpe à testa.

O justo terror da aventura, em lugar vedado, por aquelas horas, só me assaltou quando, a pular o muro do pátio, fui cair entre as mãos do Silvino. Nos apuros da alhada, mal vi o Franco seguro pelo pescoço, como um ladrão em flagrante.

Em presença do diretor, no escritório inquisitorial improvisei uma mentira. Fôramos colher sapotis, afirmei explicando à tremenda argüição a estranheza da surtida. O diretor marcou a pena de oito páginas. Franco, que andava com um deficit de vinte pelo menos, teve de acrescentar mais estas ao passivo insolvável. Pela vergonha da tentativa de furto e no sistema dos castigos morais, adicionou-se a observação suplementar: passaríamos, os delinqüentes, no outro dia, as horas do almoço e do jantar, ao refeitório, de pé carregando em cada mão quantos sapotis coubessem.

Todo o requinte de punição não me deu cuidado, pelo contrário, estava nas condições do meu programa de pequeno mártir ad majorem gloriam. Ao deixar o escritório outra coisa preocupava-me. Ardia de remorsos; tinha cacos de garrafa na consciência. A armadilha sanguinária de Franco obsedava-me como um delito meu.

Depois das horas do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os dormitórios, fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. Devorava-me o remorso como uma febre; aterrava-me a idéia do banho na manhã seguinte, os rapazes atirando-se à vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.

A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos colegas pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava-me no crânio como uma inchação de meninges. Dar-se-ia caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar o engodo da consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectivado sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda, gemendo, extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice, que o permitira, e maior culpado, que não me cegavas a razão, em suma, de justa desforra.

Ergui-me da cama, e descalço nas tábuas frias, para ver se me acalmava o mal-estar, errei pelos salões adormecidos.

Os colegas, tranqüilos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se por um desses longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de vôo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar fora chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia-se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava-se igual sobre as camas, doçura dispersa de um olhar de mãe.

Que venturosa segurança naquele museu de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a volta, pés ensangüentados, listrando de vestígios vermelhos o caminho!

Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa rosália; beijei-a com lágrimas, pedi conselho como um filho. A inquietação não passava. Atravessei ainda os dormitórios, devagarinho, que me não ouvisse o Margal, acomodado num biombo a um dos ângulos do salão azul. Uma crepitação dos ossos do tornozelo esteve a ponto de me comprometer. Dentro do biombo, tossiram; parei um momento; curou-se a tosse; prossegui.

Desci ao primeiro andar do edifício; entrei na capela.

A capela em trevas, de um negrume absoluto de merinó preto. A escuridão dava-lhe uma amplitude de subterrâneo, misteriosamente sentida no espaço. Não tive medo. Fui até ao altar. Tropecei no estrado. Ajoelhei-me no chão e descansei a testa nos braços a um dos ângulos do estrado do oratório. Rezei.

Na qualidade de mau estudante não sabia até ao fim nenhuma oração. Rogava por minha conta, improvisando súplicas, veementes, angustiosas, que deviam forçar a ombro a porta de São Pedro. Implorava de Deus diretamente, sem o intermediário empenho da minha padroeira. Até que, não posso dizer, como, adormeci.

Uma palmada acordou-me. Era dia. Ergui-me vexado, de camisola, diante do Margal e de uma porção de colegas que miravam. "É sonâmbulo, é sonâmbulo", explicavam.

Esta saída dispensava-me de dizer a que fora ali; encampei a explicação, concordando. "Que horas são?" perguntei. "Seis horas, responderam. Chegamos agora do banho". Tinham os cabelos empastados sobre os olhos. "E os cacos?!" gritei espavorido. Examinei os pés dos companheiros. Nas chinelas com que desciam ao banho não via sangue! Esclarecia-se: houvera ordem de banhos de chuva no competente banheiro, alojado em um dos cômodos baixos do Ateneu, pelo motivo de ter servido seis vezes a água da natação. Graças ao Senhor! Vinha-me do céu esta solução de águas sujas, alcançada pela minha prece. Dilatou-se-me a alma em ditoso alívio.

À minha interjeição explosiva de cacos, os colegas supuseram tontura de sono. Não assim o inspetor, que me chamou a indagar. Nova mentira: durante a escapada dos sapotis, uma garrafa, que arremessei de mau jeito, fizera-se em cacos contra o muro, sobre o tanque. Providenciou-se. O criado encarregado de varrer o tanque, com o zelo da domesticidade, chamou atenção para o número dos fragmentos; tão extraordinária era a hipótese da intenção perversa que não pegou.

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POMPÉIA, Raul. O Ateneu. Série "bom livro". São Paulo: Ática, s/d., p.48-53.

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