O ESPELHO

Um meio-dia nu, numa enorme moldura

de prata.

Parece mais o escudo de um arcanjo de fogo.

Mas não é nada. É apenas um espelho.

Um rico espelho. De extraordinário fulgor.

Próprio pra ser colocado à parede

de um ministério da Fazenda, ou de uma casa

de jogo.

Toda a cidade cabe dentro dele.

Árvores, automóveis, povo, casas de comércio

e vendedores de jornais, principalmente.

Enfim, todo o vaivém instantâneo da rua

salpicado aqui e ali pelo sol matutino.

Resultado de tudo, ele é uma coisa viva,

de gestos súbitos e esplendor repentino.

Quatro operários o conduzem pela rua.

E há uma outra rua nele, ainda mais coletiva,

é a rua oposta, extremamente nítida,

por onde vêm nossos melhores camaradas,

os nós mesmos,

ao nosso encontro, fáceis, momentâneos.

São os nossos irmãos, nascidos de repente

e em grande número.

Imagens conduzindo os nossos rostos,

ao nosso encontro, fáceis, simultâneos.

Enquanto os quatro operários conduzem o espelho

de rua em rua.

Mas não é nada. É apenas um espelho,

terrivelmente nu, que ora é azul no reflexo,

ora vermelho. É, apenas, um espelho.

Afinal, que é um espelho? um mágico de circo

casado com uma grande mulher nua

que é a vida, que é a verdade nua e crua.

Ó loucos, que levais o espelho pela rua,

quem vos encomendou tão estranho transporte?

Quando não haja nada num espelho,

há todas as hipóteses de nudez proibida

que sempre acodem à imaginação do povo.

Há uma população mágica e instantânea que mora,

toda, em sua superfície álgida.

Quando não haja nada num espelho,

há mesas verdes onde os números da fortuna

dançam.

Há duas mãos nervosas segurando um baralho

até clarear o dia.

Há o tresnoitado que, depois de haver perdido tudo,

se mira no cristal e aí se vê tragicamente,

peito engomado e colarinho duro,

mas nu, completamente nu, por dentro.

Há muito rosto, para quem – a uma certa hora –

olhar no espelho é um convite ao suicídio.

Quando não haja nada, nada, num espelho,

há ainda a hipótese

de que ele possa incendiar uma esquadra.

Quando não haja nada, absolutamente nada,

no abismo límpido de um espelho

há a pior nudez, a nudez feérica do Nada!

E o seu reflexo é tão súbito

que fere como ponta de aço os olhos inocentes

das crianças reunidas na calçada

só para o ver passar enormemente oblongo

e rútilo.

Ó loucos, escondei esse esplendor terrífico

pra que as ruas não mais se olhem no espelho

e o povo não se verifique.

Escondei-o até que a noite desça

pois as estrelas serão mais suaves e mansas...

BRAGA, Rubem (org.) Cassiano Ricardo - Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p.73-75.

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