O TEMPO E O VENTO - O ARQUIPÉLAGO

Encruzilhada

11

Era já quase noite fechada. Rodrigo acendeu outro cigarro.

– Terminaste? – perguntou.

– Não. Agora vem talvez a parte mais séria para mim. Trata-se dum acontecimento que me marcou para o resto da vida.

Rodrigo fez uma careta que exprimia ao mesmo tempo perplexidade, dúvida e uma vaga impaciência.

– Noite de 3 de outubro de 1930 – murmurou Floriano, olhando para o pai bem nos olhos.

Rodrigo ergueu vivamente a cabeça.

– Se vais me falar no Quaresma, desde já te previno que atirei nele em legítima defesa. Tu mesmo foste testemunha. O rapaz fez fogo primeiro e me feriu o braço. Depois, ninguém pode afirmar que foi o meu tiro que o matou. Os sargentos o crivaram de balas. Foi um fuzilamento.

Enquanto o pai falava, Floriano sacudia a cabeça numa lenta, paciente negativa.

– Não me refiro a isso, mas ao que aconteceu depois.

– Depois?

– O filho do Dr. Rodrigo Cambará não teve a coragem de erguer a sua arma e atirar no oficial. O pai, furioso, deu-lhe um pontapé no traseiro e gritou: "Covarde! Não és meu filho! Vai pra baixo da saia da tua mãe, maricas!"

Havia uma expressão de espanto na cara de Rodrigo. Era como se estivesse ouvindo uma história fictícia.

– Ora, Floriano, tu sabes... Eu estava com os sentidos perturbados. Tinha sido obrigado a atirar num amigo, estava ferido, perdendo sangue. Tens de levar em conta todos esses fatores...

– Está bem. Mas não negue que estava envergonhado por ter visto seu filho fazer papel feio na frente dos sargentos. Meu ato de covardia de certo modo o atingia, papai, o diminuía. foi por isso que o senhor se apressou a me renegar ali no pátio do quartel. Preste bem atenção nas suas palavras: "Não és meu filho!"

– Me deixa explicar...

Floriano ergueu o braço:

– Por favor, não se justifique. Escute. Passei o resto da vida com a marca daquele pontapé nas nádegas. Sabia que tinha perdido a sua estima e isso me doía. fiz uma auto-análise tão rigorosa quanto me foi possível na época, e conclui que tenho um horror visceral à violência. Matar o Quaresma ou qualquer outro homem, teria sido para mim uma espécie de suicídio. A bala que o atingisse me teria também atingido, irremediavelmente. Que fazer então? Decidi que devia resignar-me à idéia da minha falta de coragem física. É preciso um certo tipo de coragem para admitirmos que temos medo. mas a coisa toda não é tão simples assim. Quando pensei que havia aceito definitivamente essa condição, me surpreendi várias vezes a querer provar a mim mesmo que eu não era nenhum poltrão. Não vou descrever todas as tentativas que fiz nesse sentido. Vou contar apenas uma, talvez a mais estúpida de todas. Treze anos depois daquela noite de outubro, eu estava na cidade do Panamá em férias, sentado a uma mesa, num café do bas fond e me divertindo a olhar os tipos internacionais que bebiam e conversavam ao redor daquelas mesas: panamenhos, hindus, chineses, malaios, americanos, turcos, alemães, antilhanos... tomava mentalmente as minhas notas, com a idéia de mais tarde escrever sobre aquela cidade, aquele café e aquele momento. Pois bem. Lá pelas tantas armou-se entre dois marinheiros uma briga que acabou se generalizando. Foi o que em inglês se chama um free for all e que, traduzido livremente para a língua gaúcha, é um "pega pra capar". Uma coisa infernal... gritos, mesas caindo, garrafas, copos e cadeiras voando dum lado para outro... indivíduos com caras patibulares de navalha ou faca em punho... Mais da metade da freguesia do café, especialmente o elemento feminino, fugiu espavorida. Meu primeiro impulso foi o de sair também correndo para a rua, mas me veio de repente uma necessidade de ficar, de provar a mim mesmo que não estava com medo. fiquei onde estava, segurando o meu copo e tratando de não ser atingido pelos objetos que passavam zunindo no ar. vi um homem rolando no chão, com as mãos segurando o ventre de onde o sangue esguichava. eu estava rígido, com o coração batendo descompassado, um frio nas tripas, a boca seca... Houve um momento em que senti novo ímpeto de disparar, mas ouvi mentalmente a sua voz, Dr. Rodrigo, sim, a sua voz: "Fica sentado, covarde!" fiquei. Um gesto temerário e perfeitamente insensato. Eu estava me mostrando para mim mesmo. sim, e um pouco para o senhor... isto é, para a sua imagem que estava na minha mente me dando pontapés nas nádegas. Não é cômico?

- E eu que nem sequer suspeitava disso! – exclamou Rodrigo. – E dizer-se que com uma frase eu poderia ter te evitado todas essas complicações!

– Não. Nada de generosidades. Num caso como esse elas só servem para retardar ou impedir a solução do problema. Não se trata de perdoar nem de esquecer, mas sim de meter fundo o bisturi e tratar de arrancar o tumor inteiro, com raiz e tudo. E é mais fácil fazer isso agora, que o tempo anestesiou o paciente.

– Mas quem é o paciente... eu ou tu?

– Eu. Pelo menos fui eu quem sentiu a necessidade desta intervenção cirúrgica.

– Nesse caso és o operador e ao mesmo tempo o operado.

– Nisso é que está o estranho da coisa toda. Ninguém é bom cirurgião quando opera no seu próprio corpo. Ou não corta o suficiente ou corta demais. Mas talvez isto não passe duma frase...

Fez-se um novo silêncio. Rodrigo olhou para o filho:

– Tu te fazes uma grave injustiça, esquecendo outra noite de tua vida. Refiro-me a 31 de dezembro de 1937. Um covarde não faria o que fizeste, investir contra um bandido armado de navalha...

– Bom, naquela noite o que fiz foi o que todo o homem mais cedo ou mais tarde tem de fazer, se quiser ficar completamente adulto: matar os espectros da infância. Aquele melenudo era a encarnação dos ogres, lobisomens e fantasmas que assombraram a minha meninice. Tentei liquidá-los todos com uma garrafada. Está claro que a motivação imediata foi evitar que o bandido matasse o tio Toríbio com uma navalhada. Mas a força, a fúria com que me atirei pra cima dele e lhe quebrei a cabeça vieram dos meus terrores infantis.

– Não sei se aceito tua interpretação. Por que complicar as coisas?

– e por que simplificá-las? Não sou nenhum herói. Disso tenho a certeza. Esse ato de violência me provocou náusea. A idéia de que eu podia ter matado aquele homem me deixou gelado, me perturbou por muito tempo. repito que tenho horror à brutalidade. Um horror profundo tanto do corpo como do espírito. Tio Toríbio morreu praticamente nos meus braços. Seu sangue escorreu pelo meu ventre, pelos meus órgãos genitais, pelas minhas pernas. Eu quisera que essa espécie de batismo tivesse tido a virtude de transmitir-me a coragem extraordinária daquele homem. Nada disso aconteceu. Continuo a ser o que sempre fui. E é assim que o senhor tem de me aceitar ou repudiar.

– Te dou a minha palavra de honra – mentiu Rodrigo, caridosamente – que há muito tempo me saiu da lembrança essa noite de 3 de outubro de 1930.

– Não esteja tão certo disso. Mas quero lhe dizer algo mais. Prometi dizer tudo, mesmo que lhe doesse. Está preparado?

– Claro, homem, toca pra frente!

– O Bandeira uma noite destas ofereceu outra interpretação para o meu comportamento aquela noite. O meu gesto não foi de pura covardia. Minha mão ficou imobilizada porque eu não estava interessado em salvar a sua vida.

– Ora vai-te à merda! – exclamou Rodrigo entesando bruscamente o busto. – Não atiraste no tenente porque eras amigo dele, porque tinhas dezenove anos... porque não é fácil matar um homem. Mas não me venhas com Freud. Ah, essa não! A troco de que santo havias de desejar a morte do teu pai?

– Eu sabia que sua reação ia ser essa. É duro para um pai ouvir o que acabei de dizer... Também é duro para um filho dizer... mas não se esqueça que o Bandeira se refere a um desejo inconsciente. E eu não lhe disse que aceito a hipótese...

– Se não aceitas, por que a mencionaste?

– Esta é a hora da verdade. Quero desabafar... e não tocar mais, nunca mais, nesses assuntos.

– Vocês literatos!

Rodrigo apanhou o copo d'água que estava em cima da mesinha de cabeceira, tomou um gole, olhou para o filho e, resserenado, perguntou:

– Já terminaste?

– Não. Temos ainda o capítulo do Rio de Janeiro.

– Teu romance está ficando comprido demais.

– Meu romance? Não. Nosso romance.

Rodrigo sorriu.

– Seja. Mas é bom esclarecer a situação. tu escreves e eu vivo.

– De acordo. Queira ou não queira, o senhor tem sido a minha personagem principal. O meu "pai pródigo". Seu comportamento no Rio me intrigou, me inquietou, me decepcionou, me fascinou... tudo isso alternadamente ou ao mesmo tempo, não sei...

– Mas por quê? Que esperavas de mim?

Talvez o cumprimento das promessas de seus discursos revolucionários: a regeneração de costumes, a salvação da República... enfim, todas aquelas frases heróicas pronunciadas antes e durante a famosa "arrancada de 30".

– Achas também que "traí" a Revolução?

– Não. Achei (note que uso o verbo no passado) achei que o senhor havia traído a mim, o seu filho, por não se portar de acordo com o seu retrato romântico que o menino e o adolescente haviam pintado na minha mente com as tintas da fantasia.

– Tu não podes me acusar...

Floriano interrompeu-o:

– Por favor, não use essa palavra. eu não o estou acusando de nada, estou apenas...

Rodrigo não o escutava mais. Sentado na cama, com o dedo quase a tocar o nariz do filho, dizia:

– Não sou santo, graças a Deus. Sou dos que comem quando têm fome e bebem quando têm sede sem se preocuparem com o que possa dizer a Bíblia, o vigário ou a opinião pública. Se alguma vez me contradisse foi porque estava vivo. Nem Cristo se livrou das contradições. Um dia recomendava que oferecêssemos a face direita a quem nos tivesse batido na esquerda, e no outro expulsava os vendilhões do templo a chicotadas. E ele era santo. Eu sou um homem. E tu, que és romancista, deves saber tão bem ou melhor que eu o que era ser um homem no Rio de Janeiro, entre 1930 e 1945...

Floriano escutava, sorrindo. Quando o pai fez uma pausa, ele tornou a falar.

– Os livros de História e as antologias que lemos na escola foram todos escritos ou preparados do ponto de vista do menino e do adolescente, quero dizer, são uma glorificação, uma idealização da figura do Herói e do Pai. se as vidas de nossos homens públicos tivessem sido contadas sem censura, em toda a sua extensão e profundidade humana, veríamos que essas criaturas tinham defeitos, falhas de caráter: cometiam erros e se contradiziam. O que ficou de suas vidas e de suas personalidades nesses livros escolares que nos prepararam tão mal para a vida, foi uma síntese dourada, por assim dizer pasteurizada, para efeitos cívicos. Nem mesmo os santos foram perfeitos. A santidade não é uma soma absoluta de parcelas de perfeição, mas uma espécie de luta entre o Débito e o Crédito, o Mal e o Bem, e da qual ficou um saldo considerável a favor do bem. O adulto hoje sabe disso, mas o menino e o adolescente, que são meus inquilinos crônicos, insistiam em cultivar, manter imaculado na parede de suas casas o retrato ideal do pai. A culpa, portanto, Dr. Rodrigo Cambará, (e culpa não é a palavra exata) não foi sua. Era isto que eu tinha a lhe dizer.

Rodrigo contemplava agora o filho, entre sensibilizado e perplexo.

– E eu que pensei que não representava nada para ti!

– Há pessoas que continuam vida em fora presas às mães por um cordão umbilical psicológico. comigo se passou o contrário. Esse cordão me prendia a meu pai.

Rodrigo riu alto.

– O que estou tentando fazer com essa conversa – explicou Floriano – é cortar definitivamente esse cordão. Para meu bem, está entendendo?

– Acho essa coisa toda muito literária e rebuscada... mas compreendo.

– Fiz minha primeira tentativa nesse sentido em 1938. Lembra-se? Pedi demissão de meu emprego público e quis sair de casa. Eu precisava liquidar certas contradições de minha vida. Não podia continuar criticando uma engrenagem da qual eu era parte, nem atacar o parasitismo quando eu próprio era um parasita.

Rodrigo cruzou os braços, ficou alguns instantes a olhar o pedaço de noite que a janela emoldurava, e depois disse:

– Nunca tive preferência por nenhum de meus filhos... Bom, talvez pela Alicinha, quando vocês eram pequenos. Mas depois não. reparti entre vocês todos o meu afeto, em partes iguais. mas eu mentiria se negasse que sempre tive por ti um certo beguin, não sei, decerto por causa da nossa parecença... Parecença só física, porque em matéria de temperamento tu és Terra e Quadros até a raiz dos cabelos. É verdade que naquela noite de outubro, no quartel de Artilharia, fiquei furioso contigo. tudo quanto te disse naquele momento foi sentido, sincero. mas depois, quando esfriei, confesso que me arrependi. Havia uma coisa maior que tudo: a minha afeição pelo meu filho. Eu quis te falar, mas tu te fechaste no teu refúgio, não quiseste me ver, não foste à estação para te despedires de mim. Isso me magoou. E se mais tarde não toquei no assunto foi para não reabrir a tua ferida, estás compreendendo? Depois... bom, depois te foste afastando de mim aos poucos, sempre mais chegado à tua mãe, o que é natural... Sempre foste um homem reservado, retraído, difícil. Estou admirado de como te abriste hoje...

Fez uma pausa, atirou o toco de cigarro no cinzeiro e prosseguiu:

– Reconheço que tenho sido um pai autoritário, exclusivista, absorvente, talvez um pouco egocêntrico, não sei... Mas que diabo! Ninguém pode viver de acordo com livros ou almanaques, e sim com seus nervos, suas glândulas, suas vísceras, seu temperamento, seu corpo... Foi bom termos tido esta conversa. Muita coisa fica esclarecida.

Posou a mão no joelho do filho, encarando-o.

– Nunca te esqueças do que vou te dizer agora. Vocês literatos escrevem romances, poesias e ensaios. Os filósofos interpretam a vida e o mundo. Os cientistas e os técnicos inventam ou descobrem coisas e procuram domar a natureza, pondo-a a serviço do homem. Mas para fazer uma civilização não bastam os literatos, os filósofos, os santos, os profetas, os cientistas e os técnicos. É preciso também homens de ação e paixão como o teu trisavô, o Cap. Rodrigo, e como o teu tio Toríbio, homens que não têm medo de sujar as mãos de barro, nem mesmo de sangue, quando necessário. Sem esse tipo de gente a roda da História não anda...

Floriano sentou-se na beira da cama, apertou a mão do pai e murmurou:

– Quanto àquele outro assunto, fique tranqüilo. A Silvia é da fibra das Anas Terras, das Bibianas, das Marias Valérias e das Floras. E a minha promessa está de pé. Irei embora para o Rio o mais depressa possível.

– Estou tranqüilo. Tua palavra me basta.

Floriano olhou para seu relógio de pulso.

– Bom. Acho que não é demais tentar de novo esclarecer o que procurei com toda esta conversa. foi um cordial, honesto acerto de contas. Aceite-me como sou e eu o aceitarei como é. Sem idealizações, sem ilusões, com todas as nossas qualidades e defeitos. E sem outros compromissos um com o outro além desse enorme compromisso de nos entendermos e querermos como seres humanos.

– Que conversa, seu Floriano!

– Estamos então completamente quitados, de recibos passados?

– Sim, e devidamente selados, firmas reconhecidas em cartório – sorriu Rodrigo.

– Pois acho que hoje vou festejar o meu nascimento.

– Tens cada idéia! Para mim toda essa coisa era muito menos complicada do que a fizeste. Sou desses que não reprimem nada. Deixo escapar o vapor, alivio o peito e esqueço. E se amanhã eu te prender de novo um pontapé no rabo, quero que saibas desde já que isso não significa que não te quero bem. Pelo contrário, é uma prova de afeto. É um sinal de que não estamos mortos nem inválidos.

Floriano sacudiu afirmativamente a cabeça.

– O senhor não imagina como este desabafo me fez bem. Tirei um peso do peito. Espero que não lhe tenha feito mal.

– Mal? Pelo contrário. Eu andava louco por conversar contigo. tu é que me fugias.

Depois de breve hesitação, Floriano disse:

– Pois vou fazer uma coisa que há muito ando querendo fazer mas não fazia por pudor. Pois o pudor que vá para o diabo. E se o senhor reprovar o meu gesto também pode ir para o diabo. É isto.

Segurou o pai pelos ombros, inclinou-se sobre ele e deu-lhe um beijo no rosto. Depois ergueu-se como que um pouco envergonhado de tudo.

Rodrigo, os olhos brilhantes de lágrimas olhou para o filho, e com uma profunda e máscula ternura na voz, murmurou:

– Esse filho da puta...

Floriano fez meia volta e aproximou-se da porta, já meio em ritmo de fuga, para que o pai não visse a comoção que o dominava. Quando ele estava já com a mão na maçaneta, Rodrigo gritou:

– Mas não te esqueças, rapaz, de vez em quando solta o Cambará!

VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento - O Arquipélago. São Paulo: Editora Globo, 1963, vol. III, p. 969-976.

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