VESTIDO DE NOIVA

[2 mesas e 3 mulheres desaparecem. Duas mulheres levam 2 cadeiras. As duas mesas são puxadas para cima. Surge na escada uma mulher. Espartilhada, chapéu de plumas. Uma elegância antiquada de 1905. Bela figura. Luz sobre ela.]

Alaíde [num sopro de admiração] – Oh!

Madame Clessi – Quer falar comigo?

Alaíde [aproximando-se, fascinada] – Quero, sim. Queria...

Madame Clessi – Vou botar um disco. [dirige-se para a invisível vitrola, com Alaíde atrás.]

Alaíde – A senhora não morreu?

Madame Clessi – Vou botar um samba. Esse aqui não é muito bom. Mas vai assim mesmo.

[Samba surdinando.]

Está vendo como estou gorda, velha, cheia de varizes e de dinheiro?

Alaíde – Li o seu diário.

Madame Clessi [céptica] – Leu? Duvido! Onde?

Alaíde [afirmativa] – Li, sim. Quero morrer agora mesmo, se não é verdade!

Madame Clessi – Então diga como é que começa. [Clessi fala de costas para Alaíde]

Alaíde [recordando] – Quer ver? É assim... [ligeira pausa] "ontem, fui com Paulo a Paineiras"... [feliz] É assim que começa.

Madame Clessi [evocativa] – Assim mesmo. É.

Alaíde [perturbada] – Não sei como a senhora pôde escrever aquilo! Como teve coragem! Eu não tinha!

Madame Clessi [à vontade] – Mas não é só aquilo. Tem outras coisas.

Alaíde [excitada] – Eu sei. Tem muito mais. Fiquei!... [inquieta] Meu Deus! Não sei o que é que eu tenho. É uma coisa – não sei. Por que é que eu estou aqui?

Madame Clessi – É a mim que você pergunta?

Alaíde [com volubilidade] – Aconteceu uma coisa, na minha vida, que me fez vir aqui. Quando foi que ouvi seu nome pela primeira vez? [pausa] Estou-me lembrando!

[Entra o cliente anterior com guarda-chuva, chapéu e capa. Parece boiar.]

Alaíde – Aquele homem! Tem a mesma cara do meu noivo!

Madame Clessi – Deixa ao homem! Como foi que você soube do meu nome?

Alaíde – Me lembrei agora! [noutro tom] Ele está-me olhando. [noutro tom, ainda] Foi uma conversa que eu ouvi quando a gente se mudou. No dia mesmo, entre papai e mamãe. Deixe eu me recordar como foi... Já sei! papai estava dizendo: "O negócio acabava..."

[Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Aparecem pai e mãe de Alaíde.]

Pai [continuando a frase] – ... numa orgia louca."

Mãe – E tudo isso aqui?

Pai – Aqui, então?!

Mãe – Alaíde e Lúcia morando em casa de Madame Clessi. Com certeza, é no quarto de Alaíde que ela dormia. O melhor da casa!

Pai – Deixa a mulher! Já morreu!

Mãe – Assassinada. O jornal não deu?

Pai – Deu. eu ainda não sonhava conhecer você. Foi um crime muito falado. Saiu fotografia.

Mãe – No sótão tem retratos dela, uma mala cheia de roupas. Vou mandar botar fogo em tudo.

Pai – Manda.

[Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação]

Alaíde [preocupada] – Mamãe falou em Lúcia. Mas quem é Lúcia? Não sei. Não me lembro.

Madame Clessi – Então vocês foram morar lá? [nostálgica] A casa deve estar muito velha.

Alaíde – Estava, mas Pedro... [excitada] Agora me lembrei: Pedro. É meu marido! Sou casada. [noutro tom] Mas essa Lúcia, meu Deus! [noutro tom] Eu acho que estou ameaçada de morte! [assustada] Ele vem para cá [refere-se ao homem solitário que se aproxima].

Clessi – Deixa.

Alaíde [animada] – Pedro mandou reformar tudo, pintar. Ficou nova, a casa. [noutro tom] Ah! eu corri ao sótão, antes que mamãe mandasse queimar tudo!

Clessi – Então?

Alaíde – Lá vi a mala – com as roupas, as ligas, o espartilho cor-de-rosa. E encontrei o diário. [arrebatada] Tão lindo, ele!

Clessi [forte] – Quer ser como eu, quer?

Alaíde [veemente] – Quero, sim. Quero.

Clessi [exaltada, gritando] – Ter a fama que eu tive. A vida. O dinheiro. E morrer assassinada?

Alaíde [abstrata] – Fui à Biblioteca ler todos os jornais do tempo. Li tudo!

Clessi [transportada] – Botaram cada anúncio sobre o crime! Houve um repórter que escreveu uma coisa muito bonita!

Alaíde [alheando-se bruscamente] – Espera, estou-me lembrando de uma coisa. Espera. Deixa eu ver! Mamãe dizendo a papai.

[Apaga-se o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Pai e mãe.]

Mãe – Cruz! Até pensei ter visto um vulto – ando tão nervosa. Também esses corredores! A alma de madame Clessi pode andar por aí... e...

Pai – Perca essa mania de alma! A mulher está morta, enterrada!

Mãe – Pois é...

[Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.]

Madame Clessi – Mas o que foi?

Alaíde – Nada. Coisa sem importância que eu me lembrei. [forte] Quero ser como a senhora. usar espartilho. [doce] Acho espartilho elegante!

Clessi – Mas seu marido, seu pai, sua mãe e... Lúcia?

Homem [para Alaíde] – Assassina!

[Apaga-se o plano da alucinação. Luz no plano da realidade. Sala de operação.]

1o Médico – Pulso?

2o Médico – 160.

1o Médico – Rugina.

2o Médico – Como está isso!

1o Médico – Tenta-se uma osteossíntese!

3o Médico – Olha aqui.

1o Médico – Fios de bronze.

[Pausa.]

1o Médico – O osso!

3o Médico – Agora é ir até o fim.

1o Médico – Se não der certo, faz-se a amputação.

[Rumor de ferros cirúrgicos]

1o Médico – Depressa!

[Apaga-se a sala de operação. Luz no plano da alucinação.]

Homem [para Alaíde, sinistro] – Assassina!

Clessi [espantada] – O quê?

Homem [indicando] – Ela! Assassina!

Clessi [para Alaíde] – Você?

Alaíde [nervosíssima] – Não me pergunte nada. Não sei. Não me lembro. [num lamento] Se, ao menos, soubesse quem é Lúcia!

Homem [angustiado] – Não tem ninguém aqui? Quero chope!

Alaíde [em pânico] – Ele quer-me prender! Não deixe!

Clessi [assombrada] – Você... Matou? Você?

Alaíde [desesperada] – Matei, sim. Matei, pronto!

Homem [queixoso] – Meu Deus! Não tem ninguém para me servir. [com angústia] Ninguém! [olha para Alaíde] Assassina!

Alaíde [patética] – Matei. Matei meu noivo.

Homem – Ela disse – "matei meu noivo". Foi. Eu assisti.

Alaíde – Não assistiu nada! Não tinha ninguém. Lá não tinha ninguém! E não foi meu noivo. foi meu marido!

Clessi [frívola] – Marido ou noivo, tanto faz.

Alaíde [histérica, para o homem] – Agora me leve, me prenda – sou uma assassina.

Homem – Não prendo. Não tenho nada com isso! [angustiado] Não há ninguém para me servir? [melancólico] Ninguém!

Clessi – O senhor tem a cara do marido de Alaíde?

Alaíde – Tem sim. Ele vai dizer que não, mas tem.

Homem [grave] – Tenho...

[O homem afasta-se. Mesa desaparece. O homem carrega a cadeira.]

Quando quiser carregar o corpo, eu ajudo. [sai]

Alaíde – Ele está ali. Ali.

Clessi [admirada] – Ele quem?

Alaíde [baixo] – Meu marido.

Clessi – Vivo?

Alaíde – Morto.

[Alaíde guia Clessi. Aponta para um invisível cadáver.]

Alaíde – Viu?

Clessi – Estou vendo. Mas você?...

Alaíde – Eu. Olha os pés. Assim – tortos. [faz a mímica correspondente]

[Buzina. Rumor de derrapagem. Ambulância. Alaíde e Clessi imóveis.]

Clessi – Mar por que fez isso?

Alaíde [excitada] – Ele era bom, muito bom. bom a toda hora e em toda parte. Eu tinha nojo de sua bondade [pensa, confirma] Não sei, tinha nojo. Estou-me lembrando de tudo, direitinho, como foi. Naquele dia eu disse: "Eu queria ser Madame Clessi, Pedro. Que tal?"

RODRIGUES, Nelson. "Vestido de Noiva" in: Texto Completo de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, v.1, p.114-118.

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