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Compostos por justaposição:
construção e saga

Os compostos que causam dúvidas aos falantes do português são justamente os famigerados compostos por justaposição ou justapostos, ou seja, aqueles constituídos pela combinação de outras palavras independentes as quais mantêm ainda assim sua integridade e uma independência fonética e morfológica. Melhor dizendo, aqueles que são percebidos como uma seqüência de outras palavras e que dão vontade de escrever com hífen ou até espaço (como palavras independentes) e causam confusão na hora de colocar no plural ou usar no feminino.

Para poder entender e aplicar as regras prescritas para a flexão dos compostos por justaposição, é necessários entender alguns fatos sobre sua construção, ou melhor, as relações que se estabelecem entre os seus constuintes. Vale lembrar que os compostos eruditos têm leis distintas de formação e que os aglutinados, muitas vezes, já foram um dia justapostos e se "degeneraram/amalgamaram" pelo uso. Trataremos aqui de quatro classes de compostos por justaposição  quanto a peculiaridades estruturais, a saber:

1. Compostos sintagmáticos

É muito comum que um composto seja criado ao se "empacotar" (o que se reflete, na grafia, ora [i] pelo uso do hífen, ora [ii] pela ausência de espaço em branco, com eventuais adaptações ortográficas, como em "girassol") uma seqüência de palavras que bem poderia ocorrer numa frase sem formar um composto. É o caso, por exemplo, do par "cofre" + "forte", que tanto dá origem ao composto "cofre-forte" quanto poderia funcionar como duas palavras autônomas em alguns contextos. Perceba a diferença:

"Nessa sala há dois cofres: um muito forte e outro mais frágil. Mas só o cofre forte é à prova de bomba."

Autônomas que ocorram no exemplo acima, "cofre" e "forte" se ligam naturalmente para formar "o cofre forte", uma subestrutura sintática - ou sintagma - que funciona aí como sujeito. Pode-se dizer que, de certa forma, a ligação sintática substantivo-adjetivo observada na frase se mantenha internamente ao composto "cofre-forte". Ou melhor: pode-se dizer que "cofre-forte" seja dotado de uma estrutura sintática interna, motivo por que é aqui considerado um composto sintagmático. São diversos os exemplos desse tipo de composto no português, a saber (usamos colchetes para explicitar a estrutura sintática):

  1. estrutura [ subst. [prep. [subst.]]]: estrela-do-mar, fim-de-século, dente-de-leite e cor-de-rosa;
  2. estrutura [subst. [adj.]]: cofre-forte, dedo-durosangue-frio, verde-claro e boto-cor-de-rosa (em que "cor-de-rosa" já é um adjetivo composto);
  3. estrutura [verbo [subst.]]: guarda-chuva, pára-quedas, mata-moscas e lava-louça;
  4. estrutura [verbo [adj.]]: come-quietocome-calado e estou-fraca;
  5. estrutura [verbo [prep. [subst.]]: faz-de-conta, louva-a-deus e lava-a-jato;
  6. estrutura [[adv.] [pron.] verbo]: não-me-toques, não-me-deixes e não-me-esqueças;
  7. estrutura [[subst.] [verbo [prep. [[art.] [subst.]]]]]: maria-vai-com-as-outras;
  8. estrutura [[verbo] conj. [verbo]]: vai-e-vem, leva-e-traz.

Principalmente quanto aos compostos sintagmáticos, cabe perguntar por que cargas-d'água acabam funcionando como bloco. Por que valeria a pena considerá-los como palavras compostas? Será que não se trata na verdade de seqüências de palavras autônomas, já que se combinam naturalmente na frase? É exatamente esse tipo de dúvida que leva ao erro ortográfico de se escrever um composto com espaço em branco ("*fim-de-semana" ou "fim de semana"? "Cofre-forte" ou "cofre forte"?). Perceba que estamos aqui questionando a própria validade do conceito de composto sintagmático, em cuja defesa podem ser levantadas duas fortes razões, a saber:

  1. o composto sintagmático tem um subestrutura sintática sim, mas esta raramente poderia se inserir diretamente na estrutura das frases que o contêm. Ou ainda, no nível da grafia: escrever o composto com espaço em branco expõe seus constituintes, os quais devem então participar normalmente da estrutura global da frase.

    Compare, por exemplo:

    1. Pegou o guarda-chuva.
    2. Pegou o guarda chuva.

    Na primeira frase, "guarda-chuva" é, a despeito de sua estrutura sintática interna, um substantivo que faz parte do objeto direto de "pegue". Por outro lado, na segunda frase, não há o que priorize a ligação de "guarda" com "chuva" ou que torne esse grupo um substantivo, de forma que a leitura mais plausível para (ii) é "O guarda pegou chuva". Realmente, o "empacotamento" de um sintagma (ou composição sintagmática) gera um bloco único, com classe gramatical (substantivo, adjetivo, verbo, etc.) e traços morfológicos (gênero, número, etc.) próprios. Observe:

    1. um excelente longa-metragem
    2. um excelente filme de longa metragem
    3. A longa metragem do filme foi considerada excessiva por muitos.

    Note que apenas em (iii) há um composto, masculino a despeito de seu sintagma interno ter gênero feminino. Nos dois outros exemplos (iv) e (v), é exatamente esse (sub)sintagma que se insere diretamente, visto que o referente seja propriamente a metragem (= medida em metros e, por extensão, duração da projeção) do filme. No caso, a composição cria um nome (longa-metragem) para um referente (filme de metragem longa) a partir de uma sua característica (metragem longa) considerada definidora.

    Seguem outros exemplos de compostos cujos sintagmas internos jamais se encaixariam nas frases em que ocorrem, cada qual confrontado com uma aplicação direta do seu respectivo sintagma interno.

    1. Conte-nos uma bela história de faz-de-conta (subst. = fantasia)/Faz de conta que a gente era um avião!
    2. O mundo está passando pela usual histeria fim-de-século (adj. = típica de fim de século).

    Mais uma vez, perceba a necessidade de grafar "faz-de-conta/fim-de-século" sem espaço em branco (com hífen, no caso) para denotar a composição. Caso contrário, "faz" e "fim" teriam de ser entendidos respectivamente como verbo e substantivo nas frases em que ocorrem, o que as reestruturaria, ou melhor, desestruturaria sintaticamente.

  2. Mesmo que o sintagma interno a um composto possa se inserir diretamente numa determinada frase, sua leitura ora como composto, ora como sintagma muda o significado da frase. Em outras palavras: o composto, sintagmático ou não, deve ser mais que a soma de suas partes. Ou ainda, no nível da grafia: escrever junto (com ou sem hífen) ou separado (com espaço em branco) deve fazer diferença para o significado da frase. Em não fazendo diferença, assume-se que o significado do termo seja a soma dos seus componentes e que, portanto, este não constitui um composto, devendo ser grafado com espaço em branco. Analisemos os exemplos: "Nessa sala do banco há dois cofres: um muito forte e outro mais frágil..."

    1. "... Mas só o cofre forte é à prova de bomba."
    2. "... Mas só o cofre-forte é à prova de bomba."

    Perceba como a diferença de significado entre (i) e (ii) é drástica. Da sentença (i) conclui-se que um dos dois cofres mencionados e apenas um - o mais forte - é à prova de bomba, enquanto (ii) provavelmente implica que nenhum dos dois é à prova de bomba, mas somente o cofre-forte do banco, que deve estar fora da sala em questão. Pode parecer sutil, mas o raciocínio é simples: um cofre-forte é mais (ou melhor, é ainda outra coisa) que um cofre forte.

    É exatamente esse tipo de raciocínio que justifica compostos como "pé-de-moleque", "estrela-do-mar" e "boto-cinza" (= espécie de boto, e não apenas um boto que acontece de ter a cor cinza), apesar de seus sintagmas internos geralmente poderem se encaixar diretamente nas frases em que essas palavras ocorrem. É que "pé de moleque", "estrela do mar" e "boto cinza" constituem sintagmas nominais, ou seja, sintagmas que valem por um substantivo (grosso modo, um sintagma nominal pode tomar o lugar de qualquer substantivo, especialmente se tiver o mesmo gênero e número que o substantivo a ser substituído, como é o caso). Se essas palavras fossem escritas com espaço, os sintagmas resultantes não teriam o significado especial atribuído aos compostos originais e deveriam ser interpretados pela "soma" de suas partes. Observe o contraste nos exemplos seguintes:

    1. A bruxa de "Joãozinho e Maria" prefere pé de moleque a pé-de-moleque.
    2. Mais que a estrela-do-mar, acho que o tubarão é a verdadeira estrela do mar.
    3. Havia dois botos pintados no bloco: um verde e outro cinza. O boto cinza - que de boto-cinza tinha bem pouco - estava dando um salto.

    É também esse tipo de raciocínio que impede a hifenização de "fim de semana", por exemplo, porque não se trataria de um composto, mas de um sintagma de significado dado por suas partes. Ou ainda, (orto)graficamente: porque um "*fim-de-semana" não seria mais que um "fim de semana". Simples que possa parecer e bastante consensual que seja em princípio, esse critério para decidir se estamos lidando com um composto sintagmático propriamente dito ou apenas um sintagma dá margem a muita controvérsia no momento de sua aplicação. Isso porque ainda não foi desenvolvida uma "matemática" completa para representar o significado das palavras ou computar a soma dos significados das partes de um sintagma. Por exemplo, é fácil discordar da composição em "verde-claro", embora seja atestada por qualquer dicionário e perfeitamente defensável, já que se trataria do nome de uma tonalidade clara de verde. Perceba, entretanto, que a diferença de significado entre o composto e o sintagma é tão sutil que dificilmente um "Adoro verde(s) claro(s)" poderia ser considerado errado.

2. Compostos não-sintagmáticos

Complementarmente aos compostos sintagmáticos, é também comum que um composto por justaposição seja constituído de duas ou mais palavras que não se articulam normalmente para formar sintagmas de uma frase, ou melhor, duas ou mais palavras que são sintaticamente incompatíveis entre si. Muito embora possam aparecer em seqüência numa frase, essas palavras não estabelecem diretamente relação sintática uma com a outra, mas apenas e no máximo com um sintagma que já contenha a outra, o que pode se dar ainda por intermédio de um conectivo ("e/ou", principalmente). Compare:

Sintagma Estrutura

a. 

indivíduos surdos mudos [ [indivíduos [surdos]] [mudos] ]

b. 

indivíduos surdos e mudos [ indivíduos [[surdos] e [mudos]] ]

c. 

indivíduos surdos-mudos [indivíduos  [surdos-mudos]]

Na tabela acima, os colchetes tentam explicitar a estrutura sintática de cada sintagma, sem identificar a função de cada elemento, por ora irrelevante. Por exemplo, na estrutura (a), eles indicam que inicialmente "indivíduos" se liga a "surdos" para formar um subsintagma "indivíduos surdos" que se ligará, por sua vez, como um bloco, a "mudos", resultando no sintagma total "indivíduos surdos mudos". Vale observar aí:

Em resumo, há muitos exemplos de compostos por justaposição que carecem de estrutura sintática interna, chamados não-sintagmáticos, portanto. São constituídos, na maioria das vezes, de seqüências de palavras de mesma classe gramatical (subst.+subst.+..., adjetivo+adjetivo+... ou verbo+verbo+...), como "surdos" e "mudos". Isso não quer dizer que os elementos de um composto não-sintagmático não se relacionem, mas apenas que a natureza dessa relação não é sintática. De fato, exatamente com base nessa relação, mais propriamente semântica ou de significado, podemos dividir os compostos não-sintagmáticos em dois grandes grupos, a saber:

Perceba que há casos de composto não-sintagmático em que o significado pode parecer derivável das partes ("surdo-mudo", por exemplo), mas o composto ainda é mais que a soma das partes, nem que seja pelas seguintes razões:

2.1 por subordinação

Acontece que, mesmo que se trate de um par de palavras sintaticamente incompatíveis, é possível que, dentro de um composto e apenas aí, uma se subordine à outra à maneira de um modificador, como um adjetivo se subordina a um substantivo para modificá-lo. Ou seja, dá-se uma operação semântica em que uma das noções se sobressai e é especificada pela outra. Nesse caso, o composto é aqui chamado de não-sintagmático por subordinação. Em geral, compostos desse tipo são formados por dois substantivos, o segundo dos quais não poderia normalmente ser usado como adjetivo. Observe:

palavra-chave  peça-chave  navio-escola  tabela-resumo  operário-padrão  desvio-padrão  plano-piloto  visita-relâmpago  guerra-relâmpago  homem-  homem-sanduíche

Nos compostos acima, o constituinte em negrito é o subordinado, ou seja, que modifica o respectivo constituinte logo à esquerda, bem à maneira de um adjetivo. Perceba a subordinação em cada caso. Por exemplo: uma "palavra-chave" não é uma "palavra" e uma "chave" ao mesmo tempo. Antes, trata-se definitivamente de uma "palavra"; e, por isso, dizemos que essa é a noção que se sobressai. Contudo, não se trata de qualquer "palavra", mas especificamente de uma que metaforicamente tem a importância de uma "chave"; e, por isso, dizemos que essa é a noção que modifica ou especifica.

Vale notar que a relação semântica específica que se estabelece entre os elementos de um dado composto não-sintagmático por subordinação fica totalmente implícita e varia de composto para composto. Por exemplo, em "guerra-relâmpago", há genericamente, como em vários outros compostos, uma modificação ou especificação do primeiro elemento ("guerra") pelo segundo ("relâmpago"). Entretanto, especificamente, a modificação é feita por comparação quanto à duração ("guerra que é rápida como um relâmpago").

Quanto à ortografia, na medida em que os elementos modificadores não possam ser considerados propriamente como adjetivos, deverão formar compostos, sendo condenada a grafia com espaço em branco (por exemplo, "*palavra chave" em vez de "palavra-chave"). Entretanto, a produtividade de um determinado substantivo como modificador em compostos - como ocorre com "chave", "padrão" e "relâmpago" - parece desenvolver, com o tempo, uma sua acepção como adjetivo. Os dicionários ainda não atestam "chave" e "padrão" como tal. Por outro lado, "relâmpago" já atingiu o estatuto de adjetivo, o que permite escrever "visita relâmpago", sem hífen. Em outras palavras, é possível que um composto não-sintagmático por subordinação vá se tornando sintagmático, à medida que seus constituintes vão se tornando sintaticamente compatíveis pela evolução natural da língua. Trata-se de um processo gradativo de sintagmatização, que pode levar ao cúmulo de um composto recém-sintagmatizado se tornar obsoleto, porque passaria a ser não mais que a soma de suas partes, no novo estado de coisas. É provável, nesse caso, que surja um conflito temporário entre a norma-padrão, representada por dicionários e gramáticas, e os usuários da língua quanto à grafia desse "ex-composto", até que a norma-padrão se atualize.

Uma evidência de sintagmatização recente é sugerida, por exemplo, pelo plural alternativo "palavras-chaves" atestado pelo Aurélio, mas não pelo Houaiss. Como veremos a seguir, esse não seria o plural recomendado pelas regras de flexão de substantivo composto não-sintagmático por subordinação  e talvez esteja se desenvolvendo por "chave" estar adquirindo o estatuto de adjetivo.

2.2 por coordenação

Muitas vezes, a relação semântica entre os constituintes de um composto não-sintagmático é tão-somente a de coordenação, no sentido de que não há uma noção que se subordine ou modifique outra(s), constituindo o que chamamos aqui de composto não-sintagmático por coordenação . Mais especificamente, trata-se freqüentemente de relações de adição, simultaneidade ou paralelismo. É o que ocorre, por exemplo, em "surdo-mudo" que vale aproximadamente "surdo e mudo" ou "surdo+mudo".

Exatamente por sua relação interna ser sempre de coordenação, há vários desses compostos que parecem valer exatamente a soma das suas partes (mas só parecem), como "surdo-mudo", "socioeconômico" e "rádio-relógio". Entretanto, não faltam exemplos em que, a despeito de haver coordenação, ou talvez, não haver subordinação, o resultado vai muito além de uma mera soma e praticamente não pode ser deduzido. É o que acontece, por exemplo, com "joão-ninguém ", "couve-flor", "vai-volta ", "bate-enxuga" e "bate-não-quara".

Mais raramente, alguns compostos embutem relações de coordenação não-aditivas, como nos seguintes exemplos:

Outras vezes, a coordenação de palavras repetidas serve para fins de intensificação como em "corre-corre" e "empurra-empurra".

3. Compostos aninhados, diretos e indiretos

Uma vez que um composto nasce, ele se torna, palavra que é, base em potencial para a formação de ainda outras palavras. É o que acontece, por exemplo, entre "cor-de-rosa" e "boto-cor-de-rosa ". Quando um composto entra na formação de uma outra palavra, dizemos aqui que aquele está aninhado nesta.

No exemplo, "cor-de-rosa" está aninhado em "boto-cor-de-rosa". Nesse caso específico, temos uma nova palavra ("boto-cor-de-rosa") que surge de uma operação de composição, um de cujos operandos é um composto ("cor-de-rosa"). O resultado de uma operação de composição desse tipo é um substantivo composto sintagmático e tem propriedades específicas que vão determinar como ele vai se comportar na frase quando de sua flexão, como veremos. Duas propriedades fundamentais, nesse caso, são as seguintes:

  1. seus constituintes imediatos ("boto" e "cor-de-rosa") devem concordar em gênero e número;
  2. a desinência de número (ou seja, o morfema gramatical que vai variar na flexão de número e que normalmente é ou "s", para plural, ou nada, para singular) do composto como um todo coincide com a do núcleo ("boto") do sintagma interno ao composto ([botosubst. [cor-de-rosaadj.]]).

Em conseqüência, o plural de "boto-cor-de-rosa" é o plural de "boto" mais o plural de "cor-de-rosa". Ironicamente, no entanto, "cor-de-rosa" é invariável, motivo por que temos o plural "botos-cor-de-rosa". Seguindo o mesmo raciocínio, teríamos também "botos-brancos", mas não há aí um composto aninhado.

Acontece que, por vezes, a palavra em que o composto está aninhado é formada por operações morfológicas outras que a composição. Trata-se muito freqüentemente de operações de derivação por sufixação , cujo resultado tem propriedades diversas das que exemplificamos acima. Mais especificamente, é certo, na sufixação, que um eventual mecanismo de concordância interno ao composto não participe mais de seu mecanismo externo de concordância. Em outras palavras, é certo que as desinências (de gênero, número, etc.) da palavra resultante da sufixação não mais coincidam com quaisquer desinências do composto aninhado. É o que acontece, por exemplo, com "surdo-mudez" (= "surdo-mudo" + sufixo "ez"), de plural "surdo-mudezes" e não ""*surdos-mudezes". Outra evidência da independência entre a concordância interna do composto aninhado e a do vocábulo derivado é exatamente o fato de este não ser "**surda-mudez", numa concordância absurda entre "surdo" e o substantivo feminino "mudez".

Em resumo, "surdo-mudez" não pode ser considerado como resultado de uma operação de composição entre "surdo" e "mudez"; antes, trata-se de uma operação de derivação, por meio do sufixo "ez", sobre o composto "surdo-mudo" como um bloco. Outro exemplo similar é o verbo "dedo-durar", derivado do composto "dedo-duro" (nunca um composto de "dedo" e "durar"!) e que felizmente não deve trazer dúvidas no uso, visto que a hipótese de concordância verbal de "durar" com "dedo" e ainda um "outro" sujeito parece absurda demais. Ou seja, jamais alguém viria com um "nós **dedos-duramos" ou um "eles **dedos-duram".

Cabe, portanto, estabelecer também a distinção fundamental entre compostos diretos e indiretos, a saber: os primeiros são resultado direto de uma operação de composição, como os adjetivos "surdo-mudo" e "dedo-duro" e o substantivo "boto-cor-de-rosa", enquanto os últimos são resultado direto de uma outra operação de formação de palavras qualquer (provavelmente a derivação), um de cujos operandos é um composto, direto ou indireto. Exemplos de compostos indiretos seriam exatamente "dedo-durar" e "surdo-mudez", derivados por sufixação de "dedo-duro" e "surdo-mudo", respectivamente. Vale notar que um composto indireto sempre tem um composto aninhado.

Pode parecer muito detalhismo por ora, ou ainda uma obviedade, mas o aninhamento/indireção da composição pode explicar muitos casos de flexão aparentemente estranhos. Analisemos, por exemplo, o adjetivo "verde-claro", variável em gênero e número ("saias verde-claras") apenas em seu último constituinte. Em primeiro lugar, perceba que não se trata de um composto não-sintagmático por coordenação: uma saia verde-clara não é uma saia verde e clara ao mesmo tempo, mas uma saia de tonalidade verde-claro. Observado esse contraste, fica fácil perceber aí um aninhamento: inicialmente, forma-se o substantivo composto sintagmático "verde-claro" (plural: "verdes-claros"), direto. Em seguida, deriva-se dele o adjetivo (plural feminino: "verde-claras"), um composto indireto. Em teoria, essa operação poderia se dar de duas possíveis formas alternativas:

Acontece que o adjetivo "verde-claro" vem do substantivo pela via do sufixo zero, o que parece estar relacionado com o fato de o último constituinte do substantivo ser morfologicamente um adjetivo ("claro"). Mas isso não é sempre certo: apesar de o substantivo "azul-marinho" terminar com um adjetivo ("marinho"), o adjetivo "azul-marinho" é derivado dele por conversão, sendo, portanto, invariável. Algo que sempre vale, entretanto, é que, se um substantivo composto não termina em adjetivo, dele não se deriva adjetivo por sufixo zero. Daí podemos inferir que o adjetivo "amarelo-ouro/verde-garrafa" provém do substantivo composto não-sintagmático por subordinação "amarelo-ouro/verde-garrafa" (variável em número: "dois belos amarelos-ouro/verdes-garrafa") por conversão, sendo, portanto, invariável ("saias amarelo-ouro/verde-garrafa").

Para exercitar um pouco mais esse tipo de raciocínio, fundamental para que nos sintamos à vontade com a flexão dos compostos, acrescentamos, a seguir, alguns estudos de caso interessantes:

  1. pequeno-burguês: analogamente a "verde-claro", o adjetivo "pequeno-burguês" não é um composto não-sintagmático por coordenação: uma atitude pequeno-burguesa não é uma atitude pequena e burguesa ao mesmo tempo, mas uma atitude típica de um pequeno(-)burguês. Trata-se, portanto, de um adjetivo derivado por sufixo zero do substantivo "pequeno(-)burguês". Plural: "pequenos(-)burguesessubst" ou "pequeno-burguesesadj";

  2. pão-duro/mão-de-vaca: o substantivo "pão-duro/mão-de-vaca" seria obtido por conversão do adjetivo composto sintagmático "pão-duro/mão-de-vaca". Como esse adjetivo é variável em número apenas (plural: "pães-duros/mãos-de-vaca"), o substantivo derivado mantém as mesmas propriedades, como ocorre com todo substantivo vindo de adjetivo por conversão;

  3. pão-durismo: o substantivo "pão-durismo" é derivado, por meio do sufixo "ism", do adjetivo composto sintagmático "pão-duro". Há, portanto, como em toda sufixação, um aninhamento do composto; e sua concordância interna não participa da concordância externa do vocábulo resultante. Portanto, temos o plural "pão-durismos";

  4. cor-de-rosa: o substantivo "cor-de-rosa" seria obtido por conversão do adjetivo composto sintagmático "cor-de-rosa". Esse adjetivo tem uma peculiaridade: é invariável porque resulta da cristalização de um sintagma invariável ([bifes [cor [de [pano de chão molhado]]]], assim como [balas [sabor [morango]]]). Como ocorre com todo substantivo vindo de adjetivo por conversão, "cor-de-rosa" mantém essa propriedade, assumindo o gênero-padrão masculino. Portanto, temos o plural "dois belos cor-de-rosa/duas saias cor-de-rosa";

  5. socioeconômico: com sentido de adição entre "social" e "econômico", esse adjetivo já nasceria com um composto aninhado que nunca existiu como palavra. Tratar-se-ia mais propriamente de um radical composto, mais ou menos à maneira dos compostos eruditos: em vez de a operação de composição adicionar diretamente "social" e "econômico", é como se ela tirasse os respectivos últimos sufixos derivacionais dessas palavras (respectivamente "-al" e "-ico", diferentes na forma, mas muito próximos em sentido), obtendo dois radicais "sócio-" e "economo-". Esses dois elementos é que seriam justapostos, formando o radical composto por coordenação "socioeconomo-", que, por fim, seria sufixado para formar o adjetivo final. Graficamente:

    social + econômico =
    = [sóciorad+alsuf] + [economorad+icosuf] =  (analisando)
    = [sóciorad+economorad] + [al/icosuf] =       (reagrupando)
    = [socioeconomo]rad + icosuf =                   (simplificando)
    = socioeconômico

    Assim se explicaria a forma e flexão desse composto: "sócio-", em "socioeconômico", não seria sequer um adjetivo, nem teria desinências a serem flexionadas; antes, seria parte do radical, eminentemente invariável. Raciocínio análogo vale para alguns adjetivos gentílicos compostos.

  6. alto-falante: com sentido literal de "aquele que fala alto" e não havendo a possibilidade de "alto" modificar diretamente "falante" nesse sentido ("um falante alto" não necessariamente fala alto), o substantivo "alto-falante" seria derivado de um verbo hipotético "**alto-falar" por meio do sufixo "-nte", como "ouvinte" é derivado de "ouvir" . Perceba que:

    1. "**alto-falar" seria um composto sintagmático, baseado numa inversão do sintagma [falar [alto]] e aninhado em "alto-falante"; e
    2. em nenhuma circunstância "alto" seria variável, nem mesmo no sintagma original, como em "elas falam alto" (mas nunca "elas falam **altas", no sentido pretendido).

    Assim, tanto pelo aninhamento quanto pela invariabilidade original de "alto" naquela aplicação, temos o plural "alto-falantes".

Resumindo, as propriedades do resultado das operações de derivação consideradas depende de dois fatores: (i) o tipo da operação (conversão ou sufixação, possivelmente por sufixo zero) e, no caso de conversão, (ii) o tipo do operando (substantivo ou adjetivo), como apresentado na tabela abaixo:

Operação Operando Resultado Propriedades flexionais Exemplo
conversão substantivo adjetivo o adjetivo fica invariável amarelo-ouro
conversão adjetivo substantivo o substantivo mantém a (in)variabilidade do adjetivo cor-de-rosa

sufixação

X Y o Y apresenta desinências próprias, independentes das do X aninhado, que fica invariável. verde-claras,
surdo-mudezes

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